Perante a denúncia de que a Presidência da República estaria a pagar ilegalmente salários à sua companheira, o primeiro instinto foi atacar o “denunciante”, supostamente por ter divulgado os dados pessoais desta. Todos se lembram dos artigos de opinião publicados e de um processo intentado no tribunal contra o/a denunciante. Depois de reconhecida a legitimidade da denúncia e, particularmente, a obrigação que vincula qualquer servidor público de denunciar práticas potencialmente ilegais, passou-se para a próxima fase – a teoria de conspiração – o Presidente foi, afinal, vítima de uma estratégia que o permitiu utilizar ilegalmente recursos públicos para depois o atacar.
Neste quadro, a estratégia passou a ser atacar o “guarda” que devia ter protegido o bem público, pois o culpado, no entendimento dos arquitectos da estratégia de fuga à responsabilização, não é de quem usurpou recursos públicos, mas sim de quem o devia guardar. Assim, a atenção mudou de foco e passou a ser o SIGOF e os controladores do ministério das finanças por terem, supostamente, autorizado ou permitido a ilegal execução.
Explicado que, no âmbito da separação de poderes e fundamentado nos princípios de autonomia administrativa, financeira e patrimonial da Presidência da República, o Ministério das Finanças não tem a competência de tutelar a execução orçamental dos órgãos de soberania, evoluiu-se para um novo estágio e lançou-se uma nova narrativa.
A tese agora passou a ser: por se ter apresentado ao governo uma nova proposta de orgânica para a Presidência da República, o Presidente sentiu-se legitimado a implementar o mesmo. Mais uma vez, depois de esclarecido que, independentemente da boa-fé da proposta, ela não constitui fonte de direito e muito menos confere ao Presidente poder legislativo, que a Constituição da República não lhe confere. Só um comando parlamentar poderá alterar a orgânica da Presidência da República. Pelo que o Presidente não pode legislar, não pode criar cargos, funções, salários, direitos e regalias, muito menos pode “contratar” a sua companheira e atribuir-lhe um salário, ou permitir que o chefe da casa civil compre, a si próprio uma obra de arte.
Convém ainda realçar que qualquer ato administrativo praticado por qualquer órgão de soberania deve estar subordinado ao princípio da legalidade, pressupondo-se a existência da chamada Lei habilitante. No caso da orgânica da Presidência da República, por ser Lei, deve ser previamente aprovada pelo Parlamento.
Por último, não havendo outros argumentos, pois em todos os outros o Senhor Presidente foi irreparavelmente desmontado, o país é surpreendido com uma nova etapa da fuga à responsabilidade: atacar a legitimidade dos Juízes que têm a função de julgar o processo, com base no facto do mandato dos juízes do Tribunal de Contas estarem expirados.
A legitimidade de um Tribunal ou Juiz, cujo mandato esteja caduco, não pode ser posta em causa, existindo fundamentos jurídicos que sustentam a total capacidade para tomada de decisões. Esta legitimidade pode ser justificada pelo princípio da continuidade dos órgãos judiciais, que é importante para garantir a estabilidade e a segurança jurídica, permitindo que os tribunais continuem a funcionar na normalidade. A legitimidade também se justifica pelo princípio da legalidade e da justiça.
A anulação de atos processuais ou decisões proferidas por um juiz ou coletivo de juízes pode levar à incerteza jurídica, a injustiças e à protelação de decisões urgentes e os casos em que isso se verifica está plasmado, de forma clara, na lei.
Essa narrativa da falta de legitimidade é facilmente derrubada, uma vez que, historicamente, os órgãos têm funcionado mesmo com os mandatos caducados. A título de exemplo, os juízes do Tribunal Constitucional estão com os respectivos mandatos, que não são renováveis, caducados, mas nenhum cabo-verdiano de bom senso poderia pôr em causa as suas decisões, porque a lei ordinária que regula a orgânica deste tribunal, tal qual a do Tribunal de Contas, permitem a continuidade plena dos juízes até à tomada de posse dos seus substitutos, como está expressamente previstas na Constituição, nº 7, do artigo 215º e nº3, do art.219º.
O país não pode parar e as instituições devem continuar a funcionar. Relembramos que estes são órgãos externos ao Parlamento e que a renovação dos mandatos exige a maioria reforçada de dois terços dos deputados. Até agora, não se conseguiu um quadro de entendimento para se viabilizar a renovação destes órgãos. Não se pode, com uma mão, bloquear a renovação dos órgãos externos ao Parlamento, para, depois, com a outra mão, arguir a ausência de legitimidade desses mesmos órgãos, deixando transparecer que o propósito, afinal, pode ser usar o bloqueio como arma de arremesso político.
Para concluir, reafirmamos que o Presidente da República não pode continuar a fugir às suas responsabilidades! É um imperativo ético e moral do mais alto magistrado da nação, que deve ser o guardião e garante do cumprimento da constituição, do princípio da legalidade e o primeiro promotor da estabilidade no país.
Como já tivemos a oportunidade de referir anteriormente, um dos princípios mais básicos do direito público estipula que “não é a lei que se deve adequar às vontades dos cidadãos e instituições, mas sim estes é que se devem submeter ao cumprimento das leis.”
É assim nos Estados de Direito, é assim em Cabo Verde e não toleraremos, sob hipótese alguma, um retrocesso nesses ganhos que o país conquistou com a Constituição de 1992. Somos um Estado de Direito.