01 de maio de 1974

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Éramos uma multidão. A totalidade dos participantes já tinha alguma relação com o PAIGC, que na altura ainda não tinha cá em Cabo Verde representantes da “fação” que viria da Guiné Bissau e de Conacri – eram principalmente  estudantes que um ou dois anos antes tinham regressado a Cabo Verde vindos de Portugal, para apoiar na luta clandestina contra o colonialismo, e estudantes do então Liceu “Adriano Moreira”, alguns destacados oposicionistas muito  conhecidos no meio, ou porque já tinham sido presos políticos, ou pelas suas posições públicas. Todos militantes da causa independentista, mas a maioria sem “cartão formal” do PAIGC.

Em suma, todos comprometidos com a Independência Nacional, originários de todos os pontos da Ilha de Santiago, unidos na altura por um mesmo ideal e hoje com posições político/partidário diferentes, principalmente os dirigentes dessa grande ação que se realizou 7 dias depois do 25 de abril de 1974.

Revejo-os, e posso afirmar, que pelo menos, figuras relevantes dos dois maiores partidos políticos atuais, estiveram em Tchon Bom, Tarrafal de Santiago e enfrentaram desarmados os guardas, os reforços militares e o Diretor desse centro penitenciário. Juntos forçaram a libertação dos presos políticos angolanos e cabo-verdianos que estavam na Prisão do Tarrafal, digo no Campo de Morte Lenta do Tarrafal de Santiago.

Da Praia, lembro-me que fomos num camião, todos de pé a gritar palavras de ordem que ficaram célebres: Viva o PAIGC! Viva Amilcar Cabral! Independência já! Abaixo o colonialismo!

Passamos por todos os povoados que ficavam no percurso Praia/ Tchon Bom a recolher, grão a grão, os então escassos militantes da Independência.

Chegados a Tchon Bom aguardamos os outros camaradas que a pouco e pouco se reuniam, até o grupo tornar-se uma multidão. Bom, sinceramente para mim naquela altura éramos muitos, hoje já não tenho tanta certeza, mas que éramos defensores convictos da causa da Independência, sim tenho a certeza; que queríamos a liberdade dos presos políticos sem dúvida e; que estávamos lá para o que desse e viesse também.

O Campo de Concentração tinha recebido reforços significativos de militares portugueses que estavam espalhados á volta dessa infraestrutura, armados até aos dentes. A multidão começou a gritar as palavras de ordem:

Liberdadi pa Presos Políticos! Viva o PAIGC! Viva a Independência de Cabo Verde! Abaixo o Colonialismo!, numa cadência cada vez mais rápida e forte e a aproximar-se do portão principal.

Os militares portugueses de arma em punho gritavam nem mais um passo, nem mais um passo, mas todos nós estávamos surdos e a conquista do terreno, passo a passo, grito a grito, ia acontecendo. Já a multidão estava a menos de 5 metros se bem me lembro e á espera do primeiro disparo, quando os militares baixaram os fuzis e escolheram as rosas do 25 de Abril.

Foi um delírio total a saída dos presos. Abraços, choros, reencontros, era a felicidade plena e depois os discursos.

Dos presos políticos libertados, lembro-me de duas pessoas em especial. Do Lineu Miranda, pela sua figura imponente, serena e simpática, e do Pedrinho Damas pela sua juventude e espírito rebelde. Também do Toco de Assomada, que sorrateiramente colocou uma pistola nas mãos do Pedrinho. Também me lembro dos dois irmãos angolanos e do escritor, esse porque era pequeno e branco, o que destoava do ideal que tinha então de combatentes da liberdade.

Foi um desfilar de carros e camiões de Tchon Bom a Praia com paragens obrigatórias nos povoados mais importantes, ao som das palavras de ordem de momento.

A chegada à Praia, momento político importante, pois era na capital que residia a força maior do PAIGC, os gritos e as palavras de ordem se multiplicaram por todas as ruas e bairros. Foi uma festa pá, fiquei contente diria Chico Buarque de Holanda, sendo, no entanto, brasileiro.

Depois deste dia nunca mais ouvi falar desse 1º de maio, em que centenas de jovens desafiaram o regime fascista português e abriram as portas da liberdade a mais de uma dezena de presos políticos angolanos e cabo-verdianos.

Do primeiro de maio ouvi sempre, a partir de 5 de julho de 1975, referências ao dia do trabalhador. Mas não era um dia de luta, de manifestações. Em Cabo Verde os sindicatos na altura, autênticos comités do PAIGC, achavam e tornaram isso uma realidade a meu ver triste, que o primeiro de maio devia ser o dia dos pikeniks, dia que se organizava e ainda infelizmente é assim, passeios às praias de mar. Manifestações, que não as do regime, lembrança de alguns momentos históricos, mas com “protagonistas não oficiais”, ou seja, com protagonistas que não estiveram no mato da Guiné Bissau ou em Conacri foram “apagadas” ou esquecidas.

De qualquer das formas, valeu a pena pessoal!

Tober



6 COMENTÁRIOS

  1. Para que estes momentos da nossa história fiquem ainda mais completos e com mais veracidade, queria acrescentar aos acontecimentos em Santiago, que, antes desse dia, isto é, ainda no dia 26 de Abril (no dia seguinte ao 25 de Abril) no periodo da tarde, em S.Vicente houvera uma enorme manifestação pela artérias da cidade do Mindelo, com muita gente, muitas palavras de ordem e muito raboliço.

  2. Uma nota apenas. A maioria dos presos políticos eram de Santa Catarina ( principalmente ligados ao famoso caso “ Pérolas do Oceano “ de modo que o cortejo teve que fazer a via de Figueira das Naus e parar em Assomada. Bem, não duvido do que disse o História. Aqui, na Praia, depois do 25 de Abril houve um momento de incertezas quanto à PIDE. O General Spínola como Presidente da Junta de Salvação Nacional de Portugal não merecia muita confiança e no discurso deixou entender que as mudanças eram principalmente em Portugal. Ai, pelos dias 27 e 28 de Abril, a delegação de Cabo Verde do MFA garantiu a extinção da PIDE/DGS eram para as Colônias também. Assim, a anteceder o 1 o de Maio, houve a caça aos PIDES e informadores. Os agentes da PIDE e muitos destacados informadores foram concentrados no quartel e num barco de guerra partiram para Portugal. Na mesma altura saiu uma lista dos informadores da PIDE cabo verdianos e estes para fugir da fúria da população foram dormir nos quartéis. Entretanto, os advogados cabo verdianos prepararam todos os documentos que permitissem a libertação dos presos políticos sem demoras. Também a 27 houve uma reunião geral no Cinema da Praia, dando mote do que seria a ida ao Tarrafal o dia 1 de Maio. Uns anos antes a liderança clandestina do PAIGC tinha mudado.

  3. Bem, eu simplesmente quis somar um acontecimento em S.Vicente (a grande e intensa manifestação do dia 26 de Abril de 1974), aos acontecimentos de Santiago para assim ficarem divulgados, acontecimentos em Cabo-verde (caso não tenha havido outros eventos em outras ilhas e que desconheçamos).
    Não me preocupei que houvesse alguém a duvidar do que eu disse porque, neste caso, não deve haver espaço para se pensar em protagonismos.
    É claro que também não incluí o evento ocorrido no bairro de Ribeira Bote sitiado pelos militares portugueses disparando metralhadoras por quase uma noite inteira, onde, eu ainda adolescente lá estive do início da noite até o amanhecer do dia seguinte (porque não conseguia sair enquanto os militares não fossem embora), atrás duma parede e munido de pedras e Kocteis Molotofs;
    Nem também incluí as repetidas investidas surpresa por parte dos Polícias Militares portugueses nos seus Unimogs, pelos diferentes espaços do certro de Mindelo onde dava por mim e por outros a correrem de rua em rua (dá de sola), fugindo do barulho dos tiros que não se sabia de onde vinham, inclusivamente escondendo na Igreja do Nazareno ou enfiando deitado debaixo dos bancos da Praça Nova, tendo numa dessas investidas falecido um meu amigo na rua de Matigim pela bala de um PM.
    Porém, também derivando um pouco do que interessa verdadeiramente, também queria esclarecer o seguinte: “bem, também não duvido do que disse o Lino Pub”.

  4. Caro Tober, gostei, sinceramente, do artigo. De facto, há poucos apontamentos sobre o dia 1 de Maio de 1974 em Cabo Verde e os acontecimentos importantes que, nessa data, tiveram ligar nestas ilhas, sobretudo, na Ilha de Santiago.
    Estou plenamentede de acordo contigo neste aspecto. Sim, os acontecimentos do dia 1 de Maio de 1974 carecem de um estudo sério e de uma ampla divulgação, de forma a dar a conhecer à sociedade cabo-verdiana o que realmente se passou, os seus actores e o espaços principais de acção, trazendo à tona a verdade dos factos.
    À laia de justiça e para adicionar mais dados ao teu interessante artigo, permite-me fazer referência a dois nomes que, também, se dignaram escrever sobre este assunto. Ei -los: Jaime Schofield, Combatente da Liberdade da Pátria, ex-preso político no Tarrafal, cidadão honorário do Concelho do Tarrafal, colunista e cronista do jornal “A Semana Online “. (Este destacado e conhecido combatente afirmou numa das suas crônicas que Tarrafal de Santiago é, indubitavelmente, a primeira e verdadeira zona libertada de Cabo Verde, isto, referindo-se ao dia 1 de Maio de 1974) e Jorge Querido, também, Combatente da Liberdade da Pátria e intelectual de fina pena, no seu monumental livro “TEMPOS DE UM TEMPO QUE PASSOU”, livro esse de leitura obrigatória para quem queira conhecer, a fundo, os meandros da Luta de Libertação Nacional e alguns traços importantes da nossa identidade e idiossincrasia como povo.
    Caro Tober, continua escrevendo. Mantenha!

  5. Os 15 anos que se seguiram à independência, acabaram por destruir a bonita memoria desses primeiros dias da liberdade.

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