As recentes intervenções de, pelo menos, duas entidades reguladoras sobre dois setores importantes da realidade socioeconómica, deixaram, na opinião pública, alguma apreensão, por razões distintas é certo, mas, em ambos os casos, essas entidades evidenciaram sinais de fragilidades preocupantes, relativamente ao exercício de autoridade: num caso, de poder, e noutro, de competência.
Convém frisar, contudo, que está fora de qualquer dúvida, o colocar em questão, com relação a necessidade do país ter instituições independentes de regulação, cuja existência se justifica e se mostra indispensável, enquanto instrumentos de gestão de conflitos eventuais e de harmonização dos diversos interesses legitimamente reclamados por diversos protagonistas.
Mas as suas decisões têm que ser credíveis e fundamentadas, sob pena do seu próprio descrédito, correndo o risco de passarem de autoridades, cujo poder se alicerça na competência técnica reconhecida pelas suas decisões para entidades figurativas, cuja existência se justifica por mero processualismo burocrático e administrativo.
É de todo inadmissível, o conteúdo da recente deliberação da ARC, onde ressaltam um arrazoado inconsistente e uma confusão conceptual em matérias onde a entidade reguladora deveria demonstrar ter o domínio da ferramenta concetual e analítica.
Não se pode admitir erros de interpretação/compreensão tão grosseiros, tais como os que vêm retratados em alguns pontos da deliberação, e que não resistimos em os reproduzir aqui.
Assim, a propósito do “dever de comprovar a verdade dos fatos e ouvir as partes interessadas”, a ARC entende e citamos: “Ora, o dever de ouvir todas as partes interessadas é independente do direito de resposta a que pode haver lugar”, e para concluir passo seguinte que “Trata-se de um princípio basilar cuja preterição macula, irremediavelmente, as outras regras também basilares da atividade jornalística como o rigor, a isenção e a objetividade”.
Três questões chaves se colocam face a esse entendimento e afirmação da ARC:
A primeira, é para afirmar que o direito de resposta existe para atender exatamente a situações em que a parte objeto de notícia, ou não foi ouvida ou se ouvida, o que disse não foi convenientemente reproduzido. Logo, o direito de resposta pode, sem dúvida, resultar de a parte interessada não ter sido ouvida, e é um instrumento de reparação de eventuais danos causada pela divulgação de uma notícia.
Mais: o direito de resposta pode ser acionado sempre que o conteúdo noticiado, independentemente de a pessoa visada ter ser sido ouvida ou não, conter conteúdo ofensivo ou que ponha em causa o bom-nome, a honra e consideração de um sujeito. Logo, a conclusão lógica é obviamente: o direito de resposta depende do conteúdo e da relação ou eventual relação entre o que é noticiado e a pessoa objeto de notícia. Portanto, há uma relação intrínseca e incontornável entre o conteúdo da notícia e a pessoa objeto de notícia, sendo que a resposta o resultado de um direito daquele que se sentir lesado ou ofendido e tendo o órgão, causador do eventual dano, o dever de o assegurar cabalmente.
A segunda questão importante, é de se saber se não ouvindo uma ou outra parte interessada da notícia, se esse fato põe em causa, como diz a ARC, as “regras também basilares da atividade jornalística como o rigor, a isenção e a objetividade”. Para já, como é evidente, é claro que não!
É bom, neste ponto, que clarifiquemos dois aspetos: a fonte e as partes.
As fontes de notícia podem ser diferentes e independentes das partes interessadas, e podem não ter interesse direto no assunto a ser noticiado. A Lei dá ao jornalista uma especial garantia nessa matéria, o que lhe possibilita proteger e não revelar as suas fontes de informação, mesmo em juízo. Com isso queremos sublinhar que uma notícia pode ser feita, baseada, apenas, nas fontes de informação, sem intervenção das partes interessadas, sem que isso ponha em causa nenhuma regra do jornalismo.
Posto isso, diremos que o rigor e a objetividade de uma notícia decorrem, naturalmente, da sua relação com os fatos, sobretudo com o recurso a diversas fontes de informação, e não com a versão das partes que apenas os complementa.
Já a isenção nos remete para a dimensão subjetiva, porque quando se diz que um jornalista não é isento, isso significa que está a tomar partido, optando por estar do lado de uma das partes em detrimento da outra. Compete, nesses casos, a quem acusa de falta de isenção objetivar os termos em que isso ocorre, e explicitar em que consiste a falta de imparcialidade, bem como a identificação de situações concretas a que o jornalista favorece ou favoreceu uma das partes em presença na notícia.
Mas voltando ao entendimento da ARC, com relação a audição e a sua impreterível observância, sob pena de se estar a pôr em causa as regras básicas do jornalismo, parece evidente que as partes podem fornecer versões que não sejam coincidentes com a realidade dos fatos, e cabe ao jornalista investigar e fornecer a verdade fatual que vá para a além da versão das partes, embora, sempre que possível, deva o jornalista incorporar as versões das partes para que o público, tendo todos os elementos disponíveis, possa tirar a sua conclusão ou forme a sua própria opinião.
Um bom jornalismo não deve limitar-se e quedar-se na mera apresentação da versão das partes, senão, a ser assim, em vez de se ser jornalista, este se transformaria, inexoravelmente, num papagaio.
Não, um bom jornalismo assenta-se sobretudo, na investigação e em boas, variadas e credíveis fontes de informação que podem ser humanas ou documentais, e não simplesmente na audição das partes. A confirmação ou não pelas partes dos fatos narrados na notícia não retira e nem limita a veracidade e credibilidade da mesma, especialmente se ela for corroborada pela realidade fatual.
Deste modo, estando o jornalista na posse de fatos, provenientes de fontes que considera como seguras e idóneas, pode noticiar os mesmos fatos, sem que com isso, essa postura possa constituir-se numa violação das regras jornalísticas, e nem tão pouco, essa notícia, por esse fato, deixe de ser rigorosa e objetiva, pela simples razão de não ter sido ouvida as partes.
As partes sempre têm possibilidades de reagir às notícias a que se encontrem envolvidas, ou as confirmando, ou por via do exercício de direito de resposta, de desmentido, ou de pedido de retificação ou de esclarecimento divulgar a sua versão dos fatos. Importante: todos esses direitos são garantidos por lei.
Um exemplo banal, seria um jornalista assistir a um crime de homicídio ou as suas fontes lhe passarem a informação do acontecido, e noticiar o fato. Trata-se de uma notícia fatual, em que o jornalista não ouve e não tem que ouvir, nem o homicida nem o morto.
Ora, atuando desta forma, a notícia só seria rigorosa, objetiva e isenta se fossem ouvidas as versões do homicida e do morto?
Convenhamos que não!
A terceira questão prende-se com a exigência da lei, relativamente ao dever de ouvir as fontes e as partes. No quadro dos deveres dos jornalistas, a Lei da comunicação social (Lei mãe) estabelece na a) do artigo 6º, que os mesmos devem “sempre que possível” ouvir várias fontes. O legislador ao prescindir de utilizar as expressões “sempre” e “obrigatoriamente”, admitiu que poderá haver situações em que o jornalista possa noticiar, sem ouvir as diversas fontes. É isso que a lei estabelece e disso não se pode sair.
Se assim é, a ARC ao afirmar que o jornalista ao não ouvir uma das partes teria “maculado irremediavelmente” as regras básicas do jornalismo ou melhor, pôs em causa o rigor, a isenção e a objetividade, está a contrariar a lei, e como sabe ou deveria saber, não pode e não deve agir fora do quadro e do estrito respeito pela letra lei e do seu espírito, sob pena de deixar de agir no domínio da legalidade.
Dizer-se como nos diz a ARC que “É indubitável que o rigor, a isenção e a objetividade do texto jornalístico só se cumprem com o confronto das posições com interesses atendíveis na notícia”, é baralhar tudo, confundir tudo, é transformar a notícia na versão das partes, quando a notícia é o fato, o evento ou o acontecimento: é o “homicídio” ocorrido, independentemente, da versão do homicida ou do morto (se este ainda estiver “disponível”(?) para falar).
Mas a ARC não contente remata com isto: “A notícia para ser rigorosa e confiável tem de ter as posições de todas as partes nela envolvidas, ou pelo menos a tentativa frustrada da audição das mesmas, a qual deve ser feita referência na peça noticiosa”. Para surpresa nossa, é a própria ARC, contraditoriamente, a admitir que, em face a tentativa frustrada da audição das partes, se pode noticiar, sem que isso constitua um atentado às regras jornalísticas, desde que se faça referência à tentativa frustrada.
Mas, afinal em que ficamos?
Ora, a injunção, que a ARC faz da tentativa frustrada da audição das partes e na qual se deve fazer referência na peça, está ancorada em que dispositivo legal? De onde saiu esse normativo com o qual quer justificar e fundamentar a sua posição para proferir a sua decisão? Esta é a pergunta que a ARC terá de responder, claro, se puder!
Todavia, se a ARC não encontrar base legal para sustentar a sua tese, não pode utilizar as práticas costumeiras para as transformar em lei, já que não lhe cabe, mesmo com as melhores das boas intenções, produzir leis, cuja responsabilidade compete ao governo e ao parlamento.
A audição das partes é um complemento que enriquece a notícia, produzida com base nas fontes jornalísticas, e que permite ao destinatário do produto informativo ter vários elementos para formar a sua opinião, e não, como a ARC faz, erroneamente, crer que é a audição das partes que faz a notícia ser credível e verdadeira.
Ademais, a ARC, não contente com as suas considerações, digamos controversas, de natureza técnica jornalística, decidiu produzir uma alegação final fenomenal, que pela sua “clareza”, “pertinência” e “profundidade analítica”, não poderíamos deixar de a citar para constar nos anais e memória futura de uma autoridade reguladora independente.
Eis a “douta” e “iluminada” posição da ARC:
“O texto pela forma como foi elaborado, fazendo uma apresentação exaustiva do implicado, os cargos que ocupou e que ocupa, imputando-lhe fatos não provados – que podem até ser verdadeiros –, mas sem ponderar ouvir a versão do mesmo sobre os mesmos fatos, demonstra intenção sensacionalista, o que foi logrado, tendo em conta a repercussão que teve a notícia”.
Achando pouco o que disse atrás, a ARC conclui com mais esta: “O mesmo é claramente suscetível de pôr em causa o bom-nome, a imagem, a honra e consideração do Queixoso, sendo ele uma personalidade pública, com todas as consequências daí advenientes”.
Conclusão da ARC:
“…que o aludido texto não é rigoroso, isento e objetivo, além de não ter sido assegurada na peça a audição das partes com interesses atendíveis, de modo a comprovar a veracidade dos fatos”.
Pois bem!
Desculpem lá, mas foi isso que foi escrito pela ARC, preto no branco, em plena primavera democrática em Cabo Verde e na vigência da constituição que garante a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.
Quem comprova a veracidade dos fatos para a ARC, não são os fatos em si ocorridos e verificados, são as partes envolvidas nos fatos, quando ouvidos, que garantem a veracidade dos fatos. Magistral!
Isso nos faz lembrar de um tal artigo 50, da antiga lei de imprensa da I República (que não admitia provas da verdade dos fatos, ainda que verdadeiros, contra o PR).
Esta deliberação da ARC é um autêntico libelo acusatório à liberdade de imprensa e ao regime democrático, e vindo essas ideias de quem e de onde vieram, dá que pensar e meditar.
E uma pergunta óbvia fica no ar: para onde caminha a nossa democracia?
P.S.: Que fique claro, não há neste artigo, nenhum juízo de valor sobre o Deputado Rui Semedo, pessoa em relação a qual nutrimos maior respeito, amizade e consideração, e que, até prova em contrário, se presume inocente.
Excelente. A ARC é que nao foi isenta. De facto, isso da que pensar e meditar!
Excelente dr José António. Mas o que me espanta, é não ouvir a AJOC a defender a liberdade de imprensa neste caso.
Tantas vezes em desacordo com as posições, sobretudo, ideológicas do JAR, agora estou 100 p.c. de acordo com ele sobre os princípios que defende. Bravo Se Antonio.
Caso para se dizer, contra factos … não há argumentos!
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