A soberania e as relações internacionais

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É muito fácil invocar-se a soberania por tudo e por nada, e até para negar a própria soberania quando os órgãos legítimos do Estado a exercem. O que parece um paradoxo. Se a Assembleia Nacional, como órgão de soberania com poderes para decidir sobre escolhas fundamentais do Estado, exerce o seu poder e delibera num certo sentido, surgem sempre vozes de conveniência se insurgindo contra a hipoteca da nossa soberania. Como se questões de soberania fossem, afinal, matérias retiradas da competência dos próprios órgão de soberania.

Ora, os poderes dos órgãos de soberania em qualquer matéria apenas estão limitados pela Constituição da República. E por mais nada!

Todos os órgãos de soberania num Estado de Direito Democrático se limitam pelas próprias regras que estabelecem. Isso é importante para a proteção dos direitos de terceiros, sejam cidadãos, empresas ou outros Estados. E apenas isso gera confiança de terceiros na relação com o Estado. Um Estado que não se limita pelas normas de direito é um Estado totalitário.

Curiosamente, nas relações internacionais a imunidade assenta no principio da igualdade entre os Estados, traduzida na máxima par in parem non habet judicium. Ou seja, nenhum Estado soberano pode ser submetido à jurisdição interna de outro Estado de forma contrária à sua vontade! É, pois, um direito dos Estados soberanos!

Nas relações internacionais as auto-limitações dos Estados são uma constante e têm um peso tão determinante que quase todos os Estados se viram obrigados a atribuir aos acordos internacionais força jurídica superior às suas leis nacionais, submetendo-os apenas à Constituição. Na verdade, se um acordo internacional não ficasse salvaguardado das alterações de conjuntura (por que mudaram os governos, por que o PM se arrependeu da obrigação que assumiu), perderia grande parte da sua eficácia. A cooperação internacional exige amiúde compromissos de Estado que constituem restrições ao nosso livre poder de escolha. Só quando existe garantia que não se mostra possível alterar com ligeireza um acordo internacional, ele ganha foros de credibilidade e respeitabilidade.

Se queremos as vantagens da integração na CEDEAO, temos que restringir em grande medida os poderes de livre determinação em matéria de circulação de pessoas, de bens e de capitais. Cidadãos estrangeiros de países da região ocidental africana têm direito de entrada em CV, desde que preencham os requisitos previstos no Tratado de 1975 e nos Atos Complementares. É esta a fatura! CEDEAO tem claras vantagens, mas tem consequências!

Se um país quiser ser membro de pleno direito das Nações Unidas e estabelecer relações diplomáticas com outros Estados e organizações internacionais, é compelido a receber na sua ordem jurídica a Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas, o que implica fortes restrições em matéria da sua jurisdição criminal, mas até civil e administrativa: não pode perseguir e nem julgar o diplomata ou equiparado por crime cometido no seu território nacional!

Em regra, uma importante organização internacional só estabelece a sua representação em Cabo Verde, se se garantir imunidade aos seus funcionários, furtando-se à jurisdição cabo-verdiana.

Um país membro do Tribunal Penal Internacional tem que aceitar relevantes restrições em matéria de jurisdição criminal, nos exatos termos dos artigos 14º, 15º, 17, 18º e 19º do Estatuto de Roma. Se é certo que se aplica a regra da complementaridade, não é menos que em certas situações o TPI pode emitir ordens diretas ao Estado e perseguir e julgar alegados criminosos por infrações cometidas no seu território e à revelia da vontade desse mesmo Estado. Mas pode-se contra-argumentar dizendo que a Constituição prevê o caso do TPI… mas então se a Constituição da República permite que se abdique da jurisdição criminal sobre infrações cometidas em território cabo-verdiano, isso significa afinal que não se trata de nenhum poder <inalienável>! Mas também o TPI impõe, em certas situações, a extradição de cidadãos cabo-verdianos, fora daqueles casos expressa e especialmente previstos pela Constituição.

Quando abdicámos de conferir uma autorização administrativa prévia para certos cidadãos entrarem no território nacional, estamos a procurar vantagens globais com essa medida. É um normal exercício dos poderes de soberania!

Os exemplos podiam multiplicar-se. Neste momento em Cabo Verde existem dezenas de pessoas que se cometerem crimes no território cabo-verdiano não respondem perante os Tribunais cabo-verdianos! Esta é uma realidade indesmentível! E foi sempre assim! E não caíram o Carmo e a Trindade! Não existe nenhuma regra constitucional que imponha ao Estado o monopólio do exercício da função jurisdicional em matéria criminal por infrações cometidas em seu território. Nenhuma! Aliás, desde pelo menos 1886 que o Código Penal aplicável em Cabo Verde dizia que a lei penal era aplicável em todo o território, salvo havendo Tratado em contrário. O novo Código Penal cabo-verdiano (de 2003), no seu artigo 3º diz também a mesma coisa: salvo convenção internacional em contrário, a lei penal é aplicável aos factos praticados fora no território. Todas essas leis ressalvaram sempre a existência de acordos internacionais sobre a matéria!

A restrição na jurisdição não é impunidade, mas apenas instrumento de transferência de jurisdição!

Impressiona um certo patriotismo cabo-verdiano: acham muito bem que os outros países e organizações internacionais prestem a sua ajuda a CV, mas não se lhes deve dar absolutamente nada. É um pouco a história do venha a nós e vosso reino. Tudo que é nosso… é nosso, o que é dos outros é… nosso também.

Mas no mundo de hoje quando pedimos e aceitamos dos outros, temos que aceitar como normal e legítima a exigência de certas contrapartidas. É assim a cooperação internacional. Não existe um mundo em que podemos escolher apenas a carne e deixar o osso para os nossos parceiros. Compramos a carne, boa carne, mas com ela vem também o osso!

E ainda bem que temos alguma coisa para dar, pois uma coisa é certa: se não tivéssemos nada para dar, receberíamos seguramente muito menos do que temos recebido! É claramente excessivo, desmesurado, tratar as exceções consentidas em matéria de jurisdição criminal – e previstas há séculos nas leis penais e constitucionais – como um ataque à soberania popular, como um aviltamento do sistema democrático. Hoje nem o nacionalismo mais exacerbado se atém ao mesmo conceito de soberania do século XIX ou inícios do século XX. Os blocos políticos, a integração regional, as instituições de direito público internacional e mesmo a cooperação bilateral, alteraram completamente as regras de jogo, e ditaram um mundo novo em que se admite a soberania partilhada e se mitiga de forma decisiva e irreversível o fundamentalismo nacionalista.