Ainda o SOFA

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Vários amigos meus têm-me interpelado a respeito do Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) sobre o SOFA, pois parece que, afinal, sempre havia inconstitucionalidade, ou para ser mais fiel, “alguma inconstitucionalidade”, ou ainda, numa linguagem mais ternurenta, uma “inconstitucionalidadezinha qualquer”. Não houvesse nadinha de nada, dificilmente alguém ousaria dizer que ela (a inconstitucionalidade) existe.

Ora bem, em face do exame minucioso do Acórdão do TC e relendo o que na ocasião escrevera neste mesmo lugar, confesso que nada tenho a corrigir, pelo que mantenho integralmente o seu conteúdo, nos termos em que resulta publicado.

Como se sabe, em termos muito resumidos, eram apontadas ao SOFA sete (7) inconstitucionalidades. Todas elas foram rejeitadas categoricamente pelo TC, com uma única ressalva já muito badalada. Mas, esperem, não se trata propriamente da inconstitucionalidade de uma norma do texto do SOFA, mas de uma interpretação inadmissível que lhe pode ser dada. Dito de outro modo: é teoricamente admissível que ao segmento final do nº 2 do artigo IIII se dê um sentido que agasalhe uma hipótese que nunca antes fora prognosticada por quem quer que seja, nem pelos defensores do acordo e nem pelos seus contestatários.

Vou tentar explicar melhor: resumidamente os contestatários do SOFA diziam que ele (1) permitia a instalação de bases militares em Cabo Verde e o TC refutou os argumentos e a tese; (2) autorizava a extradição de cabo-verdianos e o TC refutou os argumentos e a tese; (3) violava a proibição constitucional da punição com a prisão perpétua e com a pena de morte, e o TC refutou os argumentos e a tese; (iv) violava o princípio da igualdade e da não discriminação, e o TC refutou os argumentos e a tese; (v) violava o princípio da soberania popular e o TC refutou os argumentos e a tese; (vi) e violava o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva e o TC refutou os argumentos e a tese.

Mas os contestatários ainda alegavam uma sétima inconstitucionalidade, segundo a qual a norma expressa na parte final do nº 2 do artigo III (que autoriza os Estados Unidos da Unidos a exercer jurisdição penal sobre o seu pessoal durante a sua permanência no território cabo-verdiano), viola o princípio da soberania nacional plasmado no nº 1 do artigo 1º e no nº 1 do artigo 11º da Constituição, e, consequentemente, a regra da tipicidade dos órgãos de soberania consagrada no artigo 119º e da tipicidade dos órgãos judiciários decorrente do artigo 214º.

Primeira resposta do TC e de forma cristalina: “o facto de Cabo Verde celebrar acordos em que se reconhece imunidade de jurisdição a entidades de outros países não é nada de extraordinário, tendo em conta toda a evolução que aconteceu no mundo”. Diz o TC que isto apenas significa o “reconhecimento da imunidade de jurisdição penal no território nacional, à semelhança do que acontece, em maior ou menor medida, com diplomatas ou pessoal técnico e administrativo das missões diplomáticas estrangeiras no nosso país”. Assunto essencial e arrumado de forma clara!

Segunda resposta do TC: da redação dada à parte final do nº 2 do artigo III se podem colher duas interpretações distintas, a primeira no sentido de a norma, para além de conferir imunidade, também autorizar os Estados Unidos a instalar tribunais marciais em Cabo Verde para aqui exercer a justiça criminal; a segunda interpretação vai no sentido segundo o qual não se extrai da norma esta autorização de instalação em Cabo Verde de tribunais marciais, devendo, portanto, os Estados Unidos exercer a justiça penal pelos crimes cometidos em Cabo Verde no próprio território americano.

E concluiu dizendo que a norma em exame não é inconstitucional quando confere imunidade ao pessoal americano, mas será já inconstitucional se tomada no sentido de permitir ainda aos Estados Unidos instalar tribunais marciais/militares em Cabo Verde.

Como toda a gente sabe, essa hipótese nunca foi aventada e nunca esteve em debate, nem é referenciada minimamente em qualquer documento de suporte, mas é hipoteticamente possível, ainda que de probabilidade muito remota. É, pois, essa a inconstitucionalidade que é apontada ao SOFA.

Também foi por isso que o TC não avalizou a mutilação do texto do SOFA, a sua mais ínfima alteração, mantendo-o na íntegra, tal como aprovado e ratificado. Resulta, deste modo, para o TC, que todas disposições do SOFA estão em conformidade com a Constituição da República de 1992, nos seus precisos termos e extensão, apenas não se admitindo o entendimento que ele (o SOFA) autoriza a instalação de tribunais militares em território cabo-verdiano para neste território exercerem os seus poderes punitivos.

Estamos todos de acordo que este sentido, nunca antes cogitado, é inadmissível.



2 COMENTÁRIOS

  1. O desafio está lançado. A quem aos juristas do PAICV, incluindo o David Almada. Ao político José Maria Neves que cedo deu opinião, como político, já se vê. Aqui sim. Há esta interpretação e ponham na em causa. Isto é democracia.

  2. Sempre que Dico fala, o mundo ‘amarelo’ treme; sempre foi assim e, agora, sempre que escreve, é um terramoto nos hostes tambarinas. A razão é: ele estuda, ele investiga, é adora a Ciência do Direito. Seus argumentos, raramente são rebatidos com base na racionalidade. Fazendo uso da sua principal arma, a baixaria, o Paicv procura atingir o Dico e muito raras vezes consegue. Desta vez, para não variar, Dico deixou o Paicv pregado no ‘SOFA’.

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