As polémicas (des)necessárias?

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“A presente reflexão serve para, na linha da maior parte dos cabo-verdianos, chamar a atenção, em respeito pela verdade e pela Constituição da República, que Amílcar Cabral não é – nunca o foi – uma figura do Estado, pelo que não se mostra aceitável que as suas fotos estejam afixadas em estabelecimentos do Estado. Quanto muito, é um Herói Nacional, uma figura nacional, como Leitão da Graça, Mascarenhas Monteiro, entre tantos outros, que se assumiram sempre como cabo-verdianos por cujos interesses se bateram.
Daí até considerar Amílcar Cabral uma figura do Estado é um exagero, além de ser uma leitura falsificada da História. Para quem insista em ver as coisas sem o rigor que reclamam, é sempre bom lembrar que as figuras do Estado estão todas plasmadas na nossa Constituição. Cabo Verde hoje dispensa tutelas mitológicas e políticas, próprias de regimes de partido único”. Emanuel Barbosa – Deputado pelo MpD

Polémica 1:

A partir de um post publicado no facebook, o deputado Emanuel Barbosa despoletou uma grande polémica a volta da colocação de fotografias das figuras que considera “não de Estado” em espaços reservados da Administração do Estado.

As polémicas, numa sociedade aberta e democrática, são normais e até desejáveis, porque concorrem para o desenvolvimento de debates, de confrontos de opiniões e clarificação de conceitos, regras e preconceitos. Portanto, nada justifica, o recurso a insultos e a diabolização do autor da observação polémica, que, na minha opinião, deve ser confrontado com as armas que normalmente se utilizam nas sociedades democráticas e civilizadas: as da contra-argumentação e fundamentação da tese contrária, rebatendo, naturalmente, a sua opinião.

Não é aceitável o recurso a ofensas pelo fato de alguém ter expressado uma opinião que, porventura, não agrade a alguns ou que vai em contramão ao que muitos possam pensar.

Numa sociedade democrática e pluralista. não existe delito de opinião, não há unanimidade na apreciação dos fatos e não existe o unanimismo. Nela há espaço para a divergência, controvérsia, dissenso, contraditório, enfim, a pluralidade, mesmo quando se trate de figuras consensuais, como nos parece é o caso de Amílcar Cabral.

Aceitar a diferença, criticar a opinião contrária ou insurgir-se contra a posição de alguém que defende tese que vai no sentido oposto à nossa é normal e é aceitável, desde que a contraposição se exprima na base de argumentos ou de opiniões fundamentadas, e não alicerçadas em insultos.

Temos que fazer evoluir a nossa forma de ser, de estar, de criticar e de fazer política, abrindo o nosso horizonte à tolerância e assumindo a diversidade como um fato da nossa realidade existencial.

Definitivamente, não ao unanimismo e não à castração mental!

O post do Deputado Emanuel Barbosa trás à colação duas questões:

A primeira, prende-se com a existência de regras que não são cumpridas ou a ausência delas para colocação de fotografias de figuras de Estado nos espaços reservados da Administração do Estado;

A segunda, refere-se ao questionamento se Amílcar Cabral foi ou não uma figura de Estado, dando a entender que só podem ser consideradas figuras de Estado aquelas que tenham exercido funções de/no Estado.

No primeiro caso, quanto à mim, seria uma questão pacífica, se o ilustre deputado a tivesse colocado num plano geral e abstrato, tendo em consideração a necessidade de haver regras para disciplinar determinadas práticas na administração do Estado, para evitar a arbitrariedade e voluntarismo.

Na verdade, como bem disse o deputado, ao lado da fotografia do Presidente da República em função, estavam as de Amílcar Cabral e de Cesária Évora. E se o deputado quisesse generalizar um pouco, facilmente apontaria para situações análogas como as existentes no Ministério das Finanças, onde poderemos encontrar nas paredes fotografias de ex-governantes, desde a independência a esta parte; situação semelhante também poderemos encontrar nas paredes do Ministério da Saúde, dos Negócios Estrangeiros ou na Assembleia Nacional, apenas para citar casos que conheço.

Ora, ao focar-se, apenas, na figura de Cabral, para exemplificar ou justificar a não observância das regras ou a sua ausência, exagerou-se, e nos pareceu um pouco despropositado atirar-se à figura de Cabral, rebaixando-o ao patamar de Leitão da Graça, sem nenhum desprimor pela figura deste, em relação a qual nutro o maior respeito. No fundo, o deputado até poderá ter razão quando reclama pela necessidade de existência de regras ou o seu respeito, mas não soube colocar adequadamente a questão e foi traído pela improvisação. É desejável que haja regras, para a afixação de fotografias de altos dignatários do Estado, e adianto, desde já, que sou favorável a colocação nos espaços da Administração do Estado, apenas, de fotografia do Chefe de Estado em função.

Relativamente a questionamento seguinte, se Amílcar Cabral é ou foi uma figura de Estado, aqui já o problema é de outra dimensão e amplitude.

A primeira questão que se coloca é a de se saber o que significa ser figura de Estado ou homem de Estado ou, ainda, Estadista.

No dicionário de Houaiss, a definição é a de que se trata de uma “pessoa versada nos princípios ou na arte de governar, ativamente envolvida em conduzir os negócios de um governo e em moldar a sua política; ou ainda pessoa que exerce liderança política com sabedoria e sem limitações partidárias”.

Por esta definição, não se pode ser tão categórico como o deputado o foi quando afirma que “Amílcar Cabral não é – nunca o foi – uma figura do Estado, pelo que não se mostra aceitável que as suas fotos estejam afixadas em estabelecimentos do Estado”, a não ser que tenha um entendimento restritivo que circunscreve como sendo figura ou homem de Estado aquele que tenha desempenhado funções ou de Presidente da República ou de Presidente da Assembleia Nacional ou de Primeiro-ministro. Ora, se assim for, nessa perspetiva, ele não foi.

Uma coisa é questionar se as fotografias de Amílcar Cabral, de Cesária Évora e de outras figuras possam estar colocadas nos espaços reservados da Administração do Estado ao lado do Presidente da República em funções, questionamento que acho mais do que legítimo.

Outra bem diferente, é contestar a fotografia de Cabral nas paredes das instituições do Estado porque, no dizer do deputado, “não é – nunca o foi – uma figura do Estado”, sugerindo, com isso, que quem a foi possa aí estar, sem mais. Será isso mesmo?

Ora, numa perspetiva redutora do que é ou será uma figura de Estado, admito que Cabral não a teria sido, simplesmente porque não chegou a desempenhar formalmente a função de/no Estado. Mas, todavia, se formos para uma visão mais ampla do conceito da figura ou homem de Estado, Cabral foi, sem dúvida, um estadista. Ele foi, simplesmente, o homem que representou e falou, em nome dos povos da Guiné e Cabo Verde na ONU, OUA, Movimento dos não-Alinhados, nas diversas capitais da Europa, Ásia, América e África, e recebido com status de homem de Estado por chefes de Estado e Governo de quase todo o mundo.

Concluo esta parte da polémica, citando um texto meu sobre o Simpósio Internacional Amílcar Cabral, publicado, em setembro de 2003, no extinto jornal Horizonte:

“O Simpósio permitiu reunir um naipe de figuras de proa nacional e internacional, e não é todos os dias que se tem a oportunidade de juntar num Encontro, personalidades como Mário Soares, Joaquim Chissano, Almeida Santos, ‘Mbow, Carlos Lopes, Carlos Veiga, e muitas outras figuras, para debitarem, da sua justiça, aquilo que pensam de Cabral, da Democracia, da Cultura e Identidade e da Globalização.

Contudo, há quem, ainda, teime em fazer justiça à história com as leis de hoje.

Há que entender que os processos históricos são o que são. Não se pode vir, hoje, comodamente dizer-se que os «tiros» deveriam ser atirados mais à direita ou mais à esquerda, sobretudo, quando, na altura, cada um tinha a sua opção a fazer perante a dominação e a exploração coloniais.

Aliás, na ocasião, muitos de nós escolheram coisas diversas: uns decidiram servir o exército colonial; outros optaram por ser capatazes da administração colonial; e outros, ainda, decidiram fugir ou desertar para se listarem nas fileiras dos movimentos anticoloniais”.

Temos, às vezes, por muito que nos custe, de ser justos.

Sim, simplesmente, justos!

Polémica 2:

Outra polémica, não menos interessante, foi despoletada pela venda de terreno onde se encontra o Liceu Cónego Jacinto, na Várzea, para edificação da Embaixada dos Estados Unidos da América.

Uma decisão que já vinha sendo trabalhada nos bastidores, de há uns tempos a esta parte, e que conheceu a luz do dia com a publicação da Portaria conjunta 14/2019 no Boletim Oficial.

Em resultado da publicação no Boletim Oficial, passou-se a conhecer os detalhes da operação que conduziu à alienação do Liceu da Várzea.

E quais os fundamentos apresentados para justificar a tomada desta decisão?

Na portaria, onde vem publicado o processo de venda, encontra-se expresso que “o Governo dos Estados Unidos da América (EUA), através da sua Embaixada em Cabo Verde, apresentou ao Estado de Cabo Verde um projeto para a construção da sua embaixada, no terreno anexo ao terreno acima mencionado pertencente ao Estado. No projeto apresentado, existe o interesse de alargamento para o lote do Estado”. Na mesma portaria acrescenta-se que “Considerando às necessidades futuras e a nova dinâmica para o ensino em Cabo Verde, a atual instalação não se adequa às necessidades futuras, devido ao crescimento populacional na área abrangida e a integração de ensino do 1º ao 12º ano de escolaridade”. Para finalmente se concluir que “É do interesse do Estado de Cabo Verde a realização do projeto apresentado pela Embaixada dos Estados Unidos da América, tendo em atenção os impactos na geração de emprego, na dinamização económica e na relação protocolar existente entre o Estado de Cabo Verde e os Estados Unidos da América”.

Das razões subjacentes à decisão podemos extrair os seguintes:

1) A iniciativa de construir a Embaixada naquele espaço é do Governo norte-americano;

2) O interesse do Estado de Cabo Verde em vender aquele espaço se prende: por um lado, com a desadequação daquele espaço para as necessidades futuras no quadro da evolução do sistema de ensino, e, por outro, com a possibilidade de geração de emprego e dinamização económica.

Aparentemente, um processo que seria simples de gerir, politicamente, se fosse conduzido de outra forma. Acredito que se o anúncio e apresentação do projeto do novo Liceu tivesse sido feito, com antecedência de, pelo menos, 2 meses, muitas das interrogações e dúvidas seriam, à partida, dissipadas. Uma boa gestão política e comunicacional do governo recomendaria que a decisão de construção do novo Liceu fosse temporalmente dissociado ou autonomizado do processo de venda do espaço (mesmo que fosse, apenas, aparentemente). Uma solução do tipo, poderia transmitir a ideia para a opinião pública que o espaço que alberga o Liceu Cónego Jacinto iria deixar de funcionar e que seria, consequentemente, desativado, deixando tempo e espaço para a comunicação da venda de terreno, cujo desfecho poderia parecer e ser entendido como seu corolário natural.

O governo, contra todas as regras de uma boa comunicação, decidiu anunciar a venda do Liceu primeiro, e depois, face a ruído gerado, comunicar a construção do novo Liceu, bem como a exibição do respetivo projeto.

A construção do novo Liceu aparece como uma justificação e não como uma opção primeira do governo, sendo que a comunicação feita com base e em teor justificativo ser, normalmente, de pendor defensivo ou reativo, tendo um impacto mais reduzido do que uma opção no sentido contrário.

Ademais, este processo deixou claro que não há uma visão para a cidade, e que se algum Plano Diretor Municipal ou Plano de desenvolvimento Urbano existir, deverá ser algo que permite tudo e o seu contrário. Aliás, pelas razões evocadas pelo governo cabo-verdiano, o governo norte-americano poderia ter pedido qualquer espaço, mesmo que esse espaço fosse o Liceu Domingos Ramos ou o Estádio da Várzea, desde que a operação gerasse contrapartidas generosas, não haveria problemas, uma vez que o plano urbanístico da cidade da Praia funciona na base de “vontade do freguês”.

Ora, uma cidade planeada e pensada não fica a mercê de solicitações avulsas. O plano deve ou deveria prever locais para receber construções de embaixadas, de edifícios públicos, de equipamentos sociais como praças, zonas verdes, implantações de fábricas, habitações, entre outras.

As coisas não podem ou não devem acontecer assim: “agora quero construir uma igreja no Taiti”. “Tenho dinheiro, compro terreno, pago o licenciamento e contruo”, e ponto final. Ou então: “agora tenho este problema de deslocação do Liceu da Várzea e … bom vou arranjar um lugarzinho aí na zona de Taiti para implantar o Liceu”, e pronto, já está!

Mas qual é a visão que se tem, em termos urbanísticos, para essa zona nobre da capital do país, tão carente de espaços verdes e de lazer?

A sensação com que se fica, é que não existe um plano de desenvolvimento urbano ou a existir ele é tão elástico que não estabeleceu nenhuma condicionalidade para edificação em zonas sensíveis da capital.

A ideia que passa é que se o pedido dos Estados Unidos da América fosse para construir a embaixada no espaço onde se vai construir o Liceu, não haveria nenhum problema, desde que as contrapartidas fossem generosas.

Ora, se as coisas se colocarem neste pé, direi, simplesmente, que estamos mal, e muito mal mesmo.

Escrevia eu, em outubro de 2009, no jornal A Nação, sobre a cidade da Praia, na esteira da minha oposição à construção de Taiti Center, o seguinte:

“Uma cidade com uma configuração geo-morfológica que tinha tudo para ser uma das mais lindas do planeta, e que por negligência e falta de planeamento atempado, foi conduzido ao estatuto de um dos burgos mais disformes que se pode imaginar”.
Para concluir no rodapé do mesmo artigo com isto:

“Ulisses Correia e Silva poderia deixar o seu nome ligado a história da cidade se, por acaso, aproveitasse a envolvente da Estátua de Amílcar Cabral, na zona baixa da cidade e construísse uma grande Praça que fizesse esquecer a de Alexandre Albuquerque. Estávamos a ver aí pessoas a passearem, esplanada desmontável, bancos, árvores e espaço verde”.

10 anos depois, continuo a temer, por aquilo que possa vir a acontecer a essa zona, a única que ainda resta para que esta cidade tenha um “pulmão” verde.

Os sinais não são animadores, a começar pela construção de uma torre junto à Sucupira que pela sua altitude já começa a atingir o nível do Plateau.

O sonho de termos, à nossa medida, a nosso Parque Eduardo VII, Central Parque NY ou Praça da Concórdia se desvanece e se tomba perante a nossa visão(?) da cidade e nosso planeamento urbanístico.