Crise da Democracia e os seus inimigos

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“A crise é a melhor bênção que pode ocorrer com as pessoas e países, porque a crise traz progressos, … É na crise que nascem as invenções, os descobrimentos e as grandes estratégias, … O inconveniente das pessoas e dos países é a esperança de encontrar as saídas e as soluções fáceis, … A verdadeira crise é a crise da incompetência”, Albert Einstein

Reduzir a democracia a um simples ato de escolha de eleitores, em eleições aparentemente livres, é simplesmente limitá-la a uma definição formal e processualista, sem se atender minimamente ao conteúdo e ao substrato da sua essência.

Uma democracia normal e verdadeira permite não só que os eleitores escolham os seus representantes, como também lhes possibilita optar por esta ou aquela proposta, por este ou aquele projeto ou este ou aquele modelo de sociedade; permite, ainda, a constituição de um vínculo ou compromisso entre aqueles que votam e os que recebem os votos, com base na confiança e na vinculação recíproca.

Deste modo, a democracia não se basta com a simples possibilidades de se poder votar, não se preocupando em quê e porquê que se vota; nem tão pouco se cumpre, apenas por que existe ou se permite fazer oposição, fiscalizar a governação e de se poder dizer tudo o que vem à cabeça; a democracia também é realização das aspirações e direitos fundamentais dos cidadãos, razão pelo qual as pessoas acreditam e comungam o ideal do bem comum e da convivência pacífica entre os seus integrantes que partilham o mesmo espaço comunitário.

Entendida assim a democracia, o ato de votar representaria o culminar de um processo em que o eleitor recebe e avalia um conjunto de informações dos concorrentes às eleições, reflete, faz o seu juízo e decide em função daquilo que achar melhor para si e para a sociedade em que vive.

Acontece porém, que se tem verificado um descompasso, cada vez mais acentuado, entre o que é proposto antes das eleições e o que é depois executado, situação que tem contribuído para o incremento de desencanto e frustração dos eleitores face aos governantes e a política e, em alguns casos, com a própria democracia.

Mais: não se verifica apenas o descompasso entre o prometido e o realizado, há também um processo de menorização e secundarização da função política, deixando espaço aberto para a ascensão e domínio do poder económico e financeiro na gestão e na determinação das opções do desenvolvimento das nações e do mundo, opções de desenvolvimento nem sempre compatíveis com políticas de inclusão, de equilíbrio de interesses, de respeito pelas questões ambientais e de respeito pela justiça nas relações entre povos e nações.

Vivemos, pois, numa profunda crise das democracias, sem nos apercebemos da insatisfação que aqui e acolá se vai aflorando, ora sob a forma de abstenção massiva e manifestações violentas ora sob o manto de escolhas esdrúxulas, protagonizadas por figuras que se apresentam como antipolíticos e anti-sistema.

Esses sinais, apesar da sua expressividade e impacto, parecem não incomodar ou inquietar quem deveria os identificar e os interpretar, e a democracia, aparentemente, que alguns acham que tudo pode e resolve, vai-se corroendo, por dentro, os seus fundamentos e alicerces essenciais.

Ora, e quando isso acontece, abre-se o campo para a emergência de populismos, de nacionalismos e de radicalismos, que explorando as fragilidades e os fracassos do sistema, “matam” a própria democracia, utilizando os próprios mecanismos gerados pela própria democracia (a ascensão de Hitler e Mussolini ao poder ilustra e ensina exatamente isso).

Concorrem para esse estado de coisas, as práticas democráticas que não são criadoras de confiança dos cidadãos e que potenciam o distanciamento entre o poder instituído e a população; que promovem a não resposta a um conjunto de necessidades económicas e sociais dos cidadãos que acabam por engrossar, cada vez mais, o grupo dos excluídos e na situação de pobreza extrema; que potenciam a emergência e o acentuar de egoísmos pessoais e nacionais que não favorecem ou não promovem a cooperação justa e solidária entre povos e nações.

As sucessivas crises económicas e financeiras que assolaram e assolam o mundo, as quais o poder político, cada vez mais, tem menor capacidade de as controlar, é a principal fonte de instabilidade e de incertezas quanto ao futuro, e, em consequência, um dos piores inimigos da democracia.

Muitos acreditam, consciente ou inconscientemente, que deste estágio democrático, apesar de todas as suas imperfeições, não sairemos, aconteça o que acontecer. Comungam da ideia da irreversibilidade das conquistas democráticas, acreditando que a democracia é o culminar da evolução civilizacional.

Uma crença que pode levar a que nada se faça para melhorar as práxis no atual exercício de democracia; que descura e não procura aperfeiçoar os seus mecanismos; que pouco ou nada faz para reduzir o nível da descrença nas instituições existentes; e que desista de lutar contra as frustrações dos cidadãos, face a não resolução ou satisfação das suas necessidades básicas.

Afinal, as pessoas, se não são, deveriam ser, a razão de ser da ação política democrática, e a procura constante do bem comum o seu fim último: só assim teríamos uma sociedade equilibrada e um mundo mais solidário, mais justo e com um destino partilhado.

Para complicar e tornar, ainda, mais vulnerável a democracia reinante, o mundo tem vivido e convido com as crises económicas e financeiras num ciclo regular e cada vez com frequência menos longa. Geralmente, essas crises atingem os mais fracos e com menos recursos para as suportar; geram desemprego galopante e pobreza extrema, potenciadores de dinâmicas conducentes a ruturas sociais; enfraquecem o próprio Estado que, face a redução da atividade económica, dispõe, cada vez menos, de meios e mecanismos para atender as demandas que derivam da própria crise.

A ideia de menos Estado parece implicar, de forma quase involuntária, nos momentos de crise, menos democracia, sobretudo num contexto em que os Estados são obrigados a praticar políticas de contenção do défice orçamental e de controlo da dívida pública. Nos dias de hoje, esta exigência torna-se algo incontornável e como condição para o acesso a financiamento no mercado ou para atrair investimento ou ajudas orçamentais por parte de países mais poderosos, ficando o Estado manietado ou perdido no seu próprio labirinto.
Porém, em conjunturas de retração económica, e praticando o Estado também políticas restritivas, traduzidas no controlo do défice orçamental e na redução da dívida pública, criam-se condições ótimas para se acrescentar à crise económica uma crise social grave, ficando o Estado numa situação de vulnerabilidade por não dispor de instrumentos para atenuar os efeitos sociais resultantes da crise económica e, ao mesmo tempo, fica refém do modelo e das receitas dos que apenas vêem e pensam números, e perdendo, consequentemente, a confiança e o apoio da população.

Esse estado de coisas, justificável ou não, geram grande descontentamento e, às vezes, um profundo mal-estar social e mesmo desespero, que não analisado e tratado convenientemente podem, a prazo, virar-se contra o sistema e as instituições legitimamente estabelecidas.

Não se espantam, pois, a ascensão ao poder de figuras e organizações que não morrem de grandes “amores” pela democracia, mas que produzem um discurso aliciante em direção aos eleitores desencantados com a prática do sistema, discurso esse que vai desde atuação contra emigrantes e a emigração, passando pela liberalização do porte de armas aos cidadãos, como a sua opção política de segurança, por abandono a políticas de proteção do meio ambiente e controlo de mudanças climáticas até chegar a políticas protecionistas e de fomento de nacionalismos estreitos, tudo isso, em contramão a políticas de cooperação e de colaboração entre os Estados e Nações, uma forma hábil de evitar a guerra e destruição que a primeira metade do século XX dramaticamente nos ilustra.

Parecendo que não, mas tudo isto constitui ameaças, com mais ou menos gravidade, para o futuro da democracia, não por culpa dessas figuras esdrúxulas e marginais da política, mas, em grande medida, por responsabilidade direta e indireta da política e dos políticos da esfera democrática que teimam em não reformar as instituições e a não regressar ao primado da política.

P.S.: O Estado de Cabo Verde, e não falamos de governo de Cabo Verde, precisa dar sinais de que se preocupa com o que se passa no Centro Comum de Visto na Praia.

Para além de algumas exigências burocráticas absurdas, em contraponto com espírito e letra do acordo de facilitação de vistos, ainda em vigor, a forma como os cidadãos, que por lá se dirigem, é tratada, não deixa de ter o seu quê de humilhante, o que é inaceitável num Estado que se respeita e que é respeitado.

Não é normal que não se possa entrar no CCV com telemóveis ou que as pessoas sejam sujeitas a revistas com detetores de metais, ou pior ainda, que atendimento seja feito, através de intercomunicador, onde todo o mundo, presente na sala de espera, fica a saber do que é dito e como é dito: não há nada, e absolutamente nada, de atendimento personalizado e com reserva de privacidade.

Em Cabo Verde, não há essa prática e exigência nos serviços públicos nacionais, sobretudo em serviços que se paga a sua prestação, e por que carga de água terá de ser um serviço estrangeiro a impor-nos essas exigências absurdas?

Foi preciso um cidadão português entrar em greve da fome à frente do CCV, para que uma dessas práticas absurdas viesse à tona.

Esperemos que o Estado de Cabo Verde defenda a nossa dignidade, exigindo um tratamento respeitoso: é o mínimo!



4 COMENTÁRIOS

  1. Crise da democracia…e seus inimigos. Inimigos de quê, da crise ou da democracia? Não entendi, melhor, eu entendi, porém muito confusa a frase. Daqui da fria Europa, onde mais uma vez um ataque está a tirar sono aos habitantes de Estrasburgo, Sede do Parlamento Europeu, olho para o Expresso das Ilhas, vejo de novo a UCID a brincar com a inteligência dos caboverdianos. Tudo por que o Expresso resolve deixar corda larga aos inimigos da nossa democracia. Como pode. UCID reclamar do Estado, a propósito de 1977, se a própria UCID aliou-se ao principal adversário da democracia, o PAICV?

  2. Meu caro José Mendonça:
    O assunto em apreço não tem nada com a exigência legitima u não da UCID. Na minha modéstia opinião o articulista tem toda razão.

  3. Se se concordar, meu caro JPM, que a democracia, tal como funciona nos dias hoje, está em crise, poderemos ter um ponto de partida para discutir a questão seguinte que é a de identificar os seus inimigos.
    O texto ilustra de forma abundante os principais ingredientes que estão a desacreditar o sistema e as instituições, nomeadamente a captura do poder político pelo económico e financeiro, a falta de resposta para o desemprego, para as desigualdades, para a pobreza extrema, para a melhor distribuição da riqueza produzida, e principalmente, para o fosso, cada vez maior, entre os governantes e os governados.
    Se se não discorda dos principais ingredientes que estão a criar um mal-estar na democracia, poderemos então avançar para identificação dos seus principais inimigos: e são todos aqueles que aproveitam dos fracassos e da não resposta aos problemas dos cidadãos pelo sistema para proporem soluções populistas, radicais e com laivos, em muitos casos, autoritários.
    Foram em ambientes, mais ou menos semelhantes, que Hitler e Mussolini ascenderam ao poder, por via democratica, e quando lá puseram os pés mostraram o que valiam.
    O presente texto procura alertar alguns distraídos e, também, aqueles que acreditam, piamente, que a história não se repete, que as conquistas democráticas não são totalmente uma realidade irreversível..
    Saudações!

  4. Vamos lá ver se nós entendemos numa coisa JAR: eu, em momento algum escrevi que sua análise é má ou inconsciente. Escrevi, e está no texto do meu comentário, que a frase que compõe o título é que seria confusa e, assim, escrevi que compreendia seu conteúdo. Logo, não há nem havia nada a esclarecer. Já sobre o cidadão que entende que eu deveria cingir os meus comentários a análise do JAR, digo-lhe simplesmente que falta-me tempo para justificar as minhas escolhas.

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