“Se o mundo for contra a verdade, então Atanásio será contra o mundo”
(Santo Atanásio)
Mais um ano decorreu sobre o 13 de janeiro de 1991, data fundante da nossa república democrática.
Parece que o dia ganhou definitivamente o estatuto e o lugar na moderna história de Cabo Verde, tendo sido marcado por um relativo consenso à volta da data e da sua celebração.
A cerimónia deste ano não fugiu a regra, tendo os atores políticos, cada um ao seu modo, usado a data para fazer valer o seu olhar sobre o que foi, o que é, o que não foi e o que deveria ser o Dia da Liberdade e da Democracia.
O discurso do Presidente da República, o melhor produzido nesse dia, chamou atenção para os problemas candentes do nosso desenvolvimento, quer do ponto socio-económico, quer do ponto de vista político-institucional.
Contudo, não deixamos de registar algumas narrativas que, dalguma forma, procuraram reescrever a própria história e a dinâmica dos acontecimentos ocorridos em 1990 e que culminaram no 13 de janeiro de 1991.
Sem pretensão de impor sentido algum ao ocorrido em 1991, convém contudo relatar, de forma mais objetiva possível, os acontecimentos, para que gerações que não vivenciaram diretamente esses eventos possam fazer algum juízo sobre a matéria.
Afinal qual foi o ponto de partida e as posições de cada ator político, antes das negociações que aconteceram no Palácio da Assembleia?
O PAICV sustentou a sua posição com base na Resolução do seu Conselho Nacional de 19 de Fevereiro de 1990 que, entre os considerandos e decisão, manifestava, e citamos:
“1) Não obstante o III Congresso ter concluído «que o nosso sistema político, na presente etapa do desenvolvimento do país, é aquele que melhor serve os interesses de Cabo Verde na luta pela reconstrução nacional», não deixou de recomendar o seu aperfeiçoamento e medidas para o reforço de organização da sociedade e a sua participação e responsabilização no e pelo desenvolvimento;
2) No quadro de aperfeiçoamento do sistema eleitoral promover a introdução do princípio de listas concorrentes. Recomendar aos órgãos competentes do Estado a alteração da lei eleitoral para a Assembleia Nacional Popular, de modo a permitir, que nas próximas eleições legislativas, além do PAICV, grupos de cidadãos possam apresentar listas de candidatos;
3) Tendo em vista a revisão da Lei Fundamental, propor ao Congresso a aceitação do princípio da supressão do dispositivo constitucional que consagra o PAICV como força política dirigente da sociedade e do Estado”.
Citamos 3 pontos chaves que alicerçavam a posição inicial do PAICV que não advogava, na altura, a realização de eleições multipartidárias, defendendo antes o aperfeiçoamento do sistema então vigente.
Por seu turno, o MpD, ancorando a sua posição na sua Declaração Política, defendia entre outras questões as seguintes:
“1) A democracia pressupõe igualdade de todos os cidadãos. Nessa base, para as próximas eleições legislativas sejam democráticas é indispensável que a sociedade dote, desde já, de mecanismos institucionais e legais que permitam a livre expressão das diversas correntes e/ou plataformas políticas em pé de igualdade;
2) A figura de «Grupos de Cidadãos», para além de dividir as forças que se opõe ao PAICV, tira toda a chance à sociedade civil de se organizar em partidos políticos que concorram às eleições legislativas com programas verdadeiramente alternativos e dirigidos à toda Nação cabo-verdiana;
3) Preconizamos uma revisão constitucional que consagre o sistema democrático e pluralista, devendo prever nomeadamente;
a) A separação efetiva de poderes legislativo, executivo e judicial;
b) A eleição do Presidente da República por sufrágio direto, secreto e universal;
c) A limitação do mandato do Presidente da República;
d) A incompatibilidade entre as funções de ministro e de deputados;
e) A criação de um Tribunal Constitucional;
f) A garantia de condições para a efetiva independência da Justiça;
g) O princípio da existência de partidos políticos;
h) As bases do estatuto da oposição;
i) Um sistema eleitoral assente no princípio da representatividade e da proporcionalidade de votos como a única expressão de legitimidade democrática;
j) A autonomia dos órgãos estatais da comunicação social, subtraindo-os da ingerência do executivo e dos partidos políticos”.
Destacamos 3 pontos da Declaração Política do MPD, de 14 de Março 1990, em contraponto aos constantes na Resolução do Conselho Nacional do PAICV, de 19 de fevereiro, em que se nota claramente que o ponto de partida e a disposição dos dois protagonistas eram bem diferentes.
Embora as posições iniciais fossem distintas, isso não impediu que fossem entabuladas negociações e tivesse havido acordo na maior parte das matérias.
Desde logo, sobre a natureza das eleições. Caiu a ideia de se realizar eleições entre PAICV e grupos de cidadãos. As eleições multipartidárias acabou por aceite e isso foi decisivo para que acontecesse o 13 de janeiro.
O grande ponto de divergência, e sobre o qual não houve acordo, foi em relação ao sistema de governo. Enquanto o MPD defendia um parlamentarismo mitigado, o PAICV, por seu turno, propugnava-se por um semi-presidencialismo, onde o Presidente disporia de poder incondicionado de dissolução do parlamento.
Em setembro de 1990, o PAICV procedeu a uma revisão extraordinária da constituição de 1980, onde, entre outras coisas, introduziu o sistema semi-presidencial e eliminou o famoso artigo 4º.
A grande crítica que fez na altura, foi que uma assembleia nacional de base monopartidária, não devia e nem tinha a legitimidade e base política para, unilateralmente, impor um sistema de governo.
Apesar das críticas e contestação, o PAICV avançou e decidiu de acordo com as suas convicções e os seus interesses políticos.
Tendo o MpD obtido mais de 2/3 de deputados nas eleições legislativa de 1991, onde se apresentou com linhas gerais para revisão constitucional, isso lhe permitiu ter condições políticas para proceder a uma revisão profunda da constituição.
A constituição de 1992 instaura e consagra um novo sistema de governo, e rompe, de forma irreversível, com os princípios que marcaram o constitucionalismo ditado pela constituição de 1980, dando corpo e expressão ao nascimento de uma nova República que as eleições de 13 janeiro de 1991 ditaram.
O processo de transição do sistema de partido único para o sistema democrático e pluralista decorreu num ambiente de relativa tranquilidade, tendo os diversos protagonistas cumprido o seu papel.
Contudo, convém frisar que o 13 de janeiro de 1991 não foi, definitivamente, uma dádiva: foi, inequivocamente, uma conquista.
P. S.: A propósito da retirada dos quadros de Tchalé Figueira da exposição no Palácio da Assembleia Nacional:
Os fundamentos ou as justificações utilizadas pela Administração da Assembleia Nacional não são convincentes. E revelam, por um lado, precipitação na tomada de decisão e, por outro, falta de coragem para assumir a postura proibicionista, utilizando o pretexto a presença de estudantes no espaço da exposição para agir como agiu.
A precipitação revela-se quando age sozinha que nem os “guardas da revolução”, sem nenhuma concertação com o dono da exposição, ao que parece, o governo;
A falta de coragem manifesta-se quando não se assume o preconceito e a defesa de uma certa moralidade (será a moralidade oficial?), e se faz passar por protetor de crianças “indefesas e ignorantes”.
Será que se trata de uma crítica às escolas que, supostamente, não ensinariam aos estudantes o corpo humano, as formas dos órgãos, as funções dos orgãos reprodutores e a sexualidade?
E se fosse um quadro, mostrando um cão a copular uma cadela, coisa banal nas ruas das nossas cidades, haveria, também, esse impulso castrador?
É que a diferença entre um cão e o homem reside no fato de a moralidade pública do cão coincidir a sua moralidade privada.
Um grande tiro nos próprios pés que só não dá demissão, porque, afinal, estamos num país de brandos costumes.
Lembro-me do senhor numa entrevista na rádio, em 90, a pôr “paninhos quentes” sobre a queda do artigo 4°. Quem foram os actores, personagens das negociações? É pena omitirem tantos factos importantes.
Caro Sr. Castilo
Fui um dos integrantes da delegação do MPD nas negociações com o PAICV. Se quiser ter mais informação basta-lhe consultar os jornais da época.
Concordo totalmente com o JAR. Lembro-me perfeitamente desses embates políticos; lembro-me do Eurico Monteiro a chefiar a delegação do MpD e o Corsino Fortes a do Paicv. Lembro-me dos desvarios do Paicv a tentar salvar um regime que, diga-se, começou a cair com a visita do Papa João Paulo II. Lembro-me também, dos embates e debates na rádio, com Jacinto Santos a deixar na “lona” a Cristina Fontes; lembro do PP a dizer que não debatia com Carlos Veiga, porque Veiga era seu funcionário. De facto, se fosse pela vontade do Paicv, as eleições supostamente livres, seriam apenas para grupo de cidadãos, mas nas municipais e, gradualmente, eleições controladas para o parlamento, com o Paicv como força luz e guia da sociedade. Lembro-me, também do lema do Paicv, nas primeiras eleições: “nada de aventuras”! Com isto, dizia o Paicv, o País não estava preparado para ser livre, pelo que, dizia o Paicv, o País precisava de alguma ditadura para aprender e apreender a conviver com a liberdade. Lembro-me ter visto e ouvido JMN em Santa Catarina, a falar mal da democracia, do multipartidarismo. Andou bem o MpD ao esticar a corda. É preciso não ter ilusões, nem o Paicv de PP, nem o Paicv do Aristides Lima, nem o Paicv de JMN, nem o Paicv de JHA são amigos da democracia e da liberdade. O habitat natural do Paicv é a ditadura, a repressão, o totalitarismo. Ainda, em pleno parlamento, assiste-se a rancores do Paicv, contra a Liberdade e Democracia.
Correção: onde se lê Corsino Fortes, deve ler-se Corsino Tolentino.
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