Diplomacia cabo-verdiana, ideologia terceiro-mundista e o “aggiornamento” (ainda) por fazer

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Luís Fonseca, um nome histórico do PAIGC (desde a luta clandestina, passando pela “tomada” da Rádio Barlavento, um dos episódios mais tristes da ditadura de inspiração leninista instalada em Cabo Verde a partir de 1974, com as suas prisões arbitrárias, perseguição sistemática dos adversários e demonstrações de força por parte dos “apparatchiks”, sem esquecer a sua participação no III Congresso de 1977, em Bissau, etc.) e que viria, depois, a ingressar na carreira diplomática, resolveu retomar, para gáudio dos prosélitos do costume e dos saudosistas do Ancien Régime, o velho estribilho ideológico do Partido Único e, a partir daí, analisar o rumo actual da política externa cabo-verdiana.

Processo realmente rocambolesco! Convenhamos.

Na perspectiva comovente desse diplomata é o regime ditatorial que deve fornecer, vejam só, a bitola moral para se aferir a qualidade da diplomacia de um Estado de direito democrático e constitucional!

Ora, isso seria trágico se não fosse deveras cómico, pondo a nu, claramente, ab initio, o tremendo irrealismo metodológico do sr. Luís Fonseca.

Trata-se, pois, de uma burla de etiquetas. No mínimo.

A sua intenção é transparente e não engana ninguém: mostrar à nação cabo-verdiana, mais uma vez, que a única linha diplomática válida é aquela proveniente da “democracia nacional revolucionária” e do “extraordinário” pensamento político de Amílcar Cabral e Renato Cardoso, exaurido, no caso deste último, já numa fase posterior, com a sua célebre “opção por uma política de paz”.

Para isso, o nosso diplomata-aposentado e adepto, indisfarçavelmente, das teses recauchutadas da caduca “vanguarda” do PAIGC-CV é obrigado, tant bien que mal, a elencar um conjunto de mitos, cuja falsidade é, todavia, patente e irremediável.

Os factos são teimosos, diria Lenine! Irredutíveis.

A diplomacia do Partido Único, na curiosa narrativa do sr. LF, era uma espécie de conto-de-fadas.

Tudo era norteado, in illo tempore, pelo “pragmatismo” e pelo doce “interesse nacional”.

Havia seriedade e critério (a ingenuidade por vezes é uma virtude! Bastava ler um Jean-François Revel – Como acabam as democracias – para se perceber a truculência ínsita no “não-alinhamento” e nas diplomacias postas em prática, enfim, pelos vários comunismos…).

Claro, sempre ao serviço do sacrossanto “progresso”, com vista, já na interpretação autêntica luisiana, “…ao desenvolvimento económico e social, à defesa da soberania, ao estabelecimento de relações mutuamente vantajosas com outros países e à proteção dos direitos e interesses dos cabo-verdianos emigrados” (sic). Ufa!

Fábulas pretéritas em riste, carneirinhos de Maria Antonieta, ideologias-de-embalar, e lá surge então o magnífico “resultado”, depois da jeitosa governação dos primeiros 15 anos de independência e da sua sapientíssima, pura e casta orientação político-diplomática: “De uma colónia esquecida e sem perspectivas, Cabo Verde converteu-se, em poucos anos, numa experiência de sucesso”, alega Luís Fonseca.

Ora, isso é pura manobra de propaganda. Uma mistela farsesca.

Não corresponde minimamente à realidade.

A ditadura do Partido Único foi, pelo contrário, um enorme fracasso, para além do seu terrível custo humano (no plano das liberdades fundamentais, etc.), cujas consequências nefastas perduram até hoje, como é evidente.

Quando o PAICV deixou o poder em 1991, após a humilhante derrota eleitoral de 13 de Janeiro (nesse dia histórico, único, em que o povo cabo-verdiano, já sem o espartilho da censura e a ameaça dos velhos tiranos, pôde expressar-se, livremente, através do voto democrático), Cabo Verde era um país estagnado, com uma taxa de crescimento económico de cerca de 1%, se tanto, e uma taxa de desemprego altíssima, isto após a desastrosa política económica calcada nas infelizes teses de Raúl Prebisch e na hostilização do investimento externo e da iniciativa privada.

O Partido Único, lembro-me bem, era a época em que o cabo-verdiano comum era obrigado a pôr-se em tristes filas para adquirir maçãs de qualidade sofrível nos postos de venda da EMPA, símbolo dos equívocos e das ilusões da geração da “luta armada”.

Era a época, também, em que as aldeias deste país, de Santo Antão à ilha Brava, não conheciam a luz eléctrica e o telefone era um luxo só ao alcance de alguns, os privilegiados.

O tal “sucesso” só existe na cabeça dos saudosistas.

É um fantasma que povoa, de vez em quando, o cérebro distinto dos revolucionários!

É isso que o sr. Luís Fonseca esconde, com miudinha circunspeção, no seu texto recheado de clichés e cerzido, vá lá, com base nas antigas (e antiquadas) técnicas de desinformação.

É preciso, perante tal manobra, assaz manipuladora, desocultar e iluminar a realidade, trazendo, simpliciter, a luz da verdade e da análise racional à esfera pública, com “Aquele olhar que às vezes está pintado à proa dos barcos”, nas palavras inspiradoras de Sophia de Mello Breyner Andresen.

A diplomacia gizada pelo Governo de Ulisses Correia e Silva, com a força e a legitimidade do voto popular exercido em 2016, é boa, forte e recomendável.

É isso que, na verdade, irrita LF. Que não consegue conviver com a diferença.

O PAICV pode ter a sua visão política, mas não pode pretender impô-la aos outros. É inaceitável.

A actual política externa cabo-verdiana é consistente, prudente, racional, firme e bem orientada, resultante de uma análise serena do panorama internacional e estruturada, com rigor, num documento chamado “Carta de Política Externa” e no próprio Programa de Governo.

Luís Fonseca refere-se a um suposto elemento “ideológico” na feitura do actual programa. É falso.

Confunde, de resto, ideologia com Axiologia!

É um erro básico e de palmatória. O rei vai nu!

Como não sabe o significado preciso de VALORES, julga então que tudo é “ideologia” e espírito de facção, preconceito corrosivo que já vinha de Karl Marx e dos círculos intelectuais comunistas em geral, permeados, por definição, pelo radical niilismo.

Ora, a política externa do Governo de Ulisses Correia e Silva faz a síntese de duas coisas essenciais: interesses e valores. Valores esses que decorrem, desde logo, da Constituição da República, cuja força normativa, e mesmo legitimante, não pode ser ignorada. Jamais.

A lengalenga luisiana é falsa do princípio ao fim.

Tenta confundir a opinião pública, trazendo a questão racial de forma negativa. Nas suas palavras:

“Assim, o governo propôs-se reescrever os fundamentos da ação diplomática através de uma ‘narrativa adequada’ em que Cabo Verde passou, a partir de então, a ser definido como ‘pequeno país africano, insular e atlântico, mestiço, política e socialmente estável, culturalmente homogéneo na base de valores da civilização ocidental judaico-cristã…’, destacando-se a novidade do recurso à caracterização racial e ideológica do país” (sic).

Que confusão!

Mas o que pretende Luís Fonseca?

Negar a História de cinco séculos desta nação cabo-verdiana, construída, numa saga complexa, a partir dos Descobrimentos portugueses?

A mestiçagem, que tanto enfurece o sr. LF, não é uma escolha política do actual Governo. Longe disso.

É, antes, um facto histórico, biológico e cultural, o qual define, inegavelmente, a nossa identidade como povo e nação.

Quem quer reescrever a história, afinal?!

Karl Marx ensinava que a revolução comunista começa precisamente na reescrita da história. É o primeiro passo. Parece que deixou bons discípulos neste arquipélago!

O pan-africanismo de Luís Fonseca anula as especificidades e a identidade dos países e impõe, de forma marcadamente totalitária, um (suposto) padrão identitário-cultural único. É a via da extrema-esquerda.

Para ele, é um autêntico escândalo que Cabo Verde se apresente, na União Africana, como um país mestiço e com valores judaico-cristãos.

Mas LF algum dia questionou, enquanto diplomata, a legitimidade de os países africanos de cultura árabe e muçulmana pertencerem à União Africana (ou outras organizações internacionais), sem renunciarem à sua específica identidade? Não, nunca o fez. A sua indignação é selectiva.

Ou será que Cabo Verde é o único país do mundo que deve renunciar, forçosamente, à sua história e identidade?

Por fim, umas breves palavras acerca da ojeriza constante, pautada por um ódio incorrigível, de LF contra o Ocidente e a sua história.

Fala, lembrando uma velha propaganda ideológica de feira, que repristina aliás Adolf Hitler e os seus sequazes, dos valores judaico-cristãos como sendo o grande responsável histórico pelo “…cortejo de atrocidades praticadas em seu nome, como a escravatura, a brutalidade do colonialismo e do apartheid, o saque das riquezas dos países colonizados, o genocídio de populações inteiras” (sic).

Ora, isso é o cúmulo da insensatez! Anti-semitismo puro. É uma acusação falsa, ridícula e desprovida de qualquer sentido. Revela, apenas, o imenso preconceito que corrói a alma de Luís Fonseca, incapaz de separar, bem se vê, a ficção da realidade.

Dos “gulags” e outros genocídios cometidos pelos regimes comunistas, que só no século XX, e em tempos de paz, mataram mais de 100 MILHÕES de pessoas, num massacre hediondo e inigualável, o humanitarista Luís Fonseca não é capaz, entretanto, de esboçar uma única referência. Omite, com a típica reserva mental de um militante, os piores crimes contra a humanidade.

Curiosamente, a civilização Ocidental – a única verdadeiramente cosmopolita e que soube autonomizar o espaço de César face ao de Deus, o que permitiu essa invenção admirável chamada “sociedade civil” – foi aquela que aboliu a escravatura e ajudou a difundir, pelas sete partidas do mundo, a Cultura dos Direitos do Homem e da Liberdade.

Nalgumas partes do mundo a escravatura ainda permanece, e não é por culpa, certamente, dos valores cristãos (para uma análise brilhante da história de África e do problema da escravatura, ver, por todos, Olavo de Carvalho, A África às avessas, in https://olavodecarvalho.org/a-africa-as-avessas/).

Saque dos países africanos e subdesenvolvidos? Que absurdo!

É uma mentira de algibeira.

O desenvolvimento do Ocidente deve-se, historicamente, a outros factores.

Paul Bairoch escreveu um livro fabuloso (Mitos e Paradoxos da História Económica, em 1993) que desfaz essa “tese” luisiana em cacos.

A falta de leitura e de conhecimentos faz realmente milagres.



4 COMENTÁRIOS

  1. Agora , de certeza, os que publicaram o trabalho de Luís Fonseca nas suas páginas de Facebook deviam dar a cara e rebater estes argumentos. Estes não são muitos convulsivos mas devem para desmontar o fraco trabalho de Luís Fonseca, impregnado de um partidarismos doentio. Os êxitos citados são falácias. De melhor qualidade e pela síntese, o trabalho de Eurico Monteiro é mais consistente e clarificador.

  2. Prezado Sr. Luiz de Pina.

    Fiz questão, há dias, de elogiar e divulgar o texto do Eurico C. Monteiro no meu Facebook, o que mostra, da minha parte, uma certa abertura de espírito e uma atitude rara neste meio provinciano, em que muitos, cinicamente, tudo fazem para esconder ou desmerecer o trabalho dos outros. Nunca vou por esse caminho.

    O trabalho do Eurico era sobretudo um RELATO, trazendo à colação alguns episódios diplomáticos do tempo do partido único, o que não deixa de ser interessante.

    Este meu artigo de opinião é, todavia, doutra natureza, muito mais abrangente, e ultrapassa o simples campo do “relato”.

    Com um olhar de águia, e um método científico-filosófico consistente, vou directamente ao “núcleo duro” do PAICV e das “teses” falaciosas de Luís Fonseca, possibilitando, de forma racional, a respectiva DESOCULTAÇÃO, desde a raiz e de uma vez por todas.

    Não é um trabalho para ser aplaudido ou rejeitado mecanicamente, à semelhança da famosa experiência de Pavlov.

    É, antes, um trabalho subtil que nos ajuda a COMPREENDER o que se passa à nossa volta, exercitando o espírito crítico e alcançando os segredos – a partir de um perspicaz cruzamento de dados políticos, culturais, religiosos, antropológicos e filosóficos… – que ditaram e ditam, até hoje, o estranho “modus operandi” do PAICV.

    Continuação de bom dia, na paz, tranquilidade e liberdade.

  3. Caro Casimiro de Pina,

    Gostei deste artigo de opiniao.
    Meus parabens.

    Gostaria de partilhar consigo dois livros interessantes:
    “Poverty is not Natural” Paperback – 2 Sept. 2019 by George Curtis
    “The Uncounted” by Alex Cobham.
    Cpts.
    CC

  4. Ponto prévio. Conheci de vista este sr LF, quando eu era ainda um jovem estudante do Sétimo Ano dos Liceus, na Praia, quando LF era um dos chefes do comité da Praia do Paigc. Seu legado chegou até mim por meio de pessoas que lhe eram próximas até 1989. De ‘balalaica’ vestido e portando uma pasta, ‘diplomata’, assim era chamada pela nomenclatura de então, o homem era o rei e senhor na sede do paicv, um prédio que surrupiado ao Estado e Cabo Verde pelo partido-estado no Plato. Foi um dos mais ferozes oponentes à ideia da abertura política naquela famosa reunião do politiburo do paicv. Resistiu até fim e só cedeu mediante a promessa de que o paicv não iria permitir haver eleições gerais, mas sim, o paicv de um lado e “grupos de cidadãos”. Foi vencido pelo cansa e, pelas ruas e pelo MpD com Dico Monteiro a dar o mote para o MpD não ceder um milímetro que fosse à chantagem política do paicv. A partir deste prédio muitos estudantes (‘elementos perigosos’ ) foram retirados das listas de bolseiros de Cabo Verde, muitos filhotes e filhinhos de papais receberam bolsa, alguns dos quais sem mesmo concluir o Liceu. Arrogante quanto basta, detestava ‘badios’, e de cabeça densamente ‘despovoado de neurónios’ no que é compensada com uma tremenda abundância de clichés nacional-comilunistas. LF comandou da sede do partido que foi surrupiado ao Estado, todos os comités do partido nas repartições públicas, que tinham como tarefa principal fisgar os ‘mandadores do boca, os boateiros e outros inimigos da revolução’. Montou uma teia de informantes políticos nas repartições públicas que tramava a vida profissional dos funcionários. Licenças para reuniões, para treinamento dos milicianos e julgamento dos tribunais populares. Os afinados a ideologia eram os melhores servidos. Os outros eram desterrados para as ilhas sem opções. Famílias destruídas, casamentos desfeitos é parte do saldo que os informantes do partido deixaram. O sujeito odeia a democracia, a liberdade, o Estado de direito e a liberdade política e económica. A partir do Jornal Tribuna ele e o Olivio Pires tinham missão ‘educar as massas para a revolução’ que diziam estar próxima, porém com muitos desafios pela frente entre eles ‘a pequena burguesia local, muito influenciada pela Igreja Católica’. Para vencer esses desafios foi engendrada ‘a escola de formação política’ o instituto Amílcar Cabral edificado noutro terreno roubado fisgado do Estado e constituído em São Martinho Grande pela extinta empresa pública de construção, EMEC. LF é o tipo que faz uma perfeita dupla com o seu colega de partido, JMN… fala muito, porém, diz algo próximo do nada. Um ‘nada’ muito rebuscado é certo, mas um grande nada. Casimiro tratou de descascar a insensatez do LF, pelo que não me cabe alongar. Só digo que é indigno afirmar que a ditadura detinha melhores propostas e propósitos para a nossa diplomacia. Que a ditadura serve melhor a Cabo Verde que a democracia. É o mesmo que fazer a apologia do nazismo. Só os idiotas conseguem visualizar algo de bom e positivo num regime ditatorial como aquele que o sr LF ajudou a fundar em Cabo Verde de 1975 a 1989.

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