Imprensa livre versus imprensa não livre

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“Precisamos da liberdade para impedir o Estado de abusar do seu poder, e precisamos do Estado para impedir a liberdade de provocar abusos”. Karl Popper in “Televisão: um perigo para a democracia”

Nos últimos tempos, abriu-se uma discussão interessante em Cabo Verde sobre o papel da imprensa privada na comunicação social global do país e o seu impacto no desenvolvimento da democracia.

Discussão essa, despoletada não por operadores privados da comunicação social, como seria legitimamente expetável, mas, especialmente, promovida por associação de jornalistas, o que não deixa de ser curioso.

Em decorrência desse evento, os operadores privados decidiram criar, e bem, uma associação, cuja finalidade foi e será, certamente, a de defender os interesses ligados às atividades do setor e a de se constituir em porta-voz, institucionalmente falando, dos operadores privados junto do governo.

A criação de uma associação com estas caraterísticas é sumamente importante, e poderá ser, caso vier assumir esse papel, um elemento relevante, junto ao governo, na definição de políticas e medidas de políticas para o setor.

Contudo, alguns intervenientes do debate deixaram transparecer que o nascimento da associação não resultou de uma necessidade intrínseca dos operadores para melhor produzirem e servirem o público, mas antes como uma reação às dificuldades por que os órgãos privados passam, decorrentes, no entender dos mesmos, de políticas deliberadas do governo para os asfixiar, sobretudo no domínio fiscal.

Real ou não, talvez por isso ou não, uma grande dramaticidade foi imprimida ao discurso, com dois grandes chavões: “É preciso salvar a comunicação social privada para salvar a democracia” e “A imprensa privada, independente, livre, plural e fiscalizadora, no que se refere a jornais impressos em Cabo Verde, encontra-se ferida de morte”.

Impressionante? Nem por isso!

E por acaso, se alguém decidir questionar, se não será de um pretensiosismo sem limites, achar-se que a salvação da democracia em Cabo Verde decorre e depende da existência de imprensa privada, estará esse sujeito, de todo, louco?

No que nos diz respeito, diremos simples e socraticamente que não sabemos.

O que todos nós, sem dúvida, sabemos é que a imprensa privada está ao mesmo nível de importância que os outros atores como os partidos políticos, as diversas organizações da sociedade civil (ONG, sindicatos, associações profissionais, ordens profissionais. etc), e sobretudo o exercício de uma cidadania ativa e a utilização responsável das liberdades cívicas como elementos essenciais para manter e reforçar a democracia.

A liberdade de imprensa, sem dúvida, é um pilar da democracia e é um canal do exercício da liberdade de expressão, mas convenhamos é de toda a imprensa e é de toda a sociedade, e não restringida a imprensa privada.

Não podemos admitir como verdadeira a tese que o bom jornalismo está do lado dos privados e que o mau jornalismo se encontra na esfera do público. Da mesma forma que não é admissível que se insinue e se estabeleça a dicotomia de que bons jornalistas são aqueles que trabalham no privado e maus aqueles que estão no público.

Não há nenhum patrão privado, detentor de um órgão de comunicação social que não queira impor ou veicular a sua visão e os seus interesses, quer do ponto de vista político quer do ponto de vista económico e quer, ainda, do ponto de vista filosófico e doutrinário no órgão de comunicação social de que é proprietário.

Isto é inquestionável!

A nossa constituição da república estabelece de forma enfática que “É assegurada a liberdade e a independência dos meios de comunicação social relativamente ao poder político e económico”, intuindo a nossa carta magna, como é óbvio, que não é apenas o poder político que tem interesse em controlar os meios de comunicação, mas que o poder económico procura, sem dúvida, também controlar e condicionar os órgãos de comunicação.

Mais: a constituição da república estabelece e exige uma especial obrigação/dever aos órgãos públicos de comunicação quando diz que “Nos meios de comunicação social do sector público é assegurada a expressão e o confronto de ideias das diversas correntes de opinião”, omitindo essa exigência aos orgãos privados que podem ter ou definir a sua orientação editorial de acordo com os seus objetivos e com os interesses do seu proprietário.

Portanto, essa dicotomização entre imprensa livre e não livre ou entre imprensa boa e imprensa má, só se entende no quadro de uma certa hiperbolização do discurso e de um certo catastrofismo apocalítico inerentes à marcação de posição e estratégia negocial dos operadores, visando obter o máximo de concessões da parte do governo, aliás que apressadamente, sem olhar para o caderno de encargos, veio a acenar com a possibilidade de ser atribuída a essa novel associação o estatuto de utilidade pública.

Ninguém nega a importância e a relevância de se ter uma imprensa privada forte e interventiva. O Estado deve apoiar projetos editoriais que sejam consistentes, credíveis e de qualidade no quadro de uma política de incentivos (materiais, legais e fiscais), alicerçada numa regulamentação que estabeleça regras claras, como as condições de acesso e as situações de inelegibilidades. Não se pode gastar dinheiro dos contribuintes com projetos editoriais privados inviáveis ou cujo produto não tenha acolhimento ou recetividade do mercado ou seja: produtos que ninguém compra.

Neste ponto entra a dimensão qualidade: será que a atual imprensa privada cabo-verdiana é geradora de produtos de melhor qualidade que a imprensa não privada?

O Estado deve despender dinheiro dos contribuintes em produções editoriais manifestamente sem qualidade, só porque vem do setor privado da comunicação social?
Honestamente, achamos que não!

O serviço público reclamado e proclamado, por alguns dos atores privados, deverá estar ancorado na qualidade do produto fornecido, pois, sem isso, por mais boa vontade que se possa ter, ficará difícil sustentar e defender determinadas medidas e políticas, sob pena de se estar a promover a mediocridade e a gastar dinheiro público em matérias não prioritárias.

A imprensa privada tem e deve defender os seus interesses, e da outra forma não poderia ser. Aliás, é na pluralidade desses interesses que temos órgãos, por esse mundo fora, que se assumem marcadamente de direita ou conservadores e os assumidamente de esquerda ou progressistas. Quando esses projetos editorias são claramente adotados, o mercado sabe o produto que compra e a transparência nas transações comunicacionais flui com a necessária clareza.

Assim deveria acontecer sempre!

Por isso, duvido que a salvação dos órgãos privados passe por uma intervenção do Estado, no sentido de os tornar subsídios dependentes. A salvação dos órgãos, dos que tiverem que se salvar, passará essencialmente por um dimensionamento correto dos respetivos projetos empresariais, por uma definição de projetos editoriais consistentes e credíveis, pela qualidade das suas produções e pela introdução de novas tecnologias que permitam subscrições online entre outras soluções tecnológicas que possam gerar receitas não convencionais.

A imprensa tradicional, a nível mundial, atravessa uma profunda crise, em resultado da emergência de internet e de novas plataformas de comunicação, nomeadamente as redes sociais e os blogs entre outros. A adaptação aos novos tempos e às novas formas de comunicação marcará o tempo de vida de uns e a morte de outros: é a lei da adaptação e da renovação natural. Quem não se dispuser a inovar e a adaptar à nova realidade está condenado a não sobreviver num mundo em permanente mudança e transformação.

A salvação da imprensa privada está nas mãos dos operadores privados desse ramo de atividade, e de lá não poderá sair sob pena de não justificarem a razão da sua existência. Caberá ao governo desenvolver políticas que apoie e viabilize o setor, sem todavia o substituir nas suas iniciativas e também nas suas responsabilidades.

Será, quanto a nós, importante que o governo revisite a lei que regula o quadro de incentivos à imprensa privada, bem como a lei da publicidade de maneira a se introduzir mais justiça e de se aprimorar melhor os mecanismos de atribuição, de acesso, de manutenção e de penalização, incluindo a de cessação de apoio do Estado aos órgãos privados de comunicação social.

P.S.: Cabo Verde precisa, rapidamente, passar do discurso de um dos países mais avançados em África, em matéria de governação eletrónica e de internet em banda larga, para a prática efetiva e verificável.

Na realidade, a ANAC lançou uma consulta pública, com início em setembro de 2015 e com término em outubro do mesmo ano, visando a introdução em Cabo Verde de redes de comunicações móveis terrestres de quarta geração (4G), tecnologia que já vem sendo implementado, em muitos países, desde 2008.

O resultado dessa consulta desconhecemos, o que sabemos é que andamos muito mal em matéria de internet, cuja velocidade deixa muito a desejar, e quando se quer ser um país competitivo com nível de atraso dessa natureza, fica-se na dúvida se essa alegada competitividade se é a sério ou a brincar.

A propósito: os nossos vizinhos regionais, designadamente Senegal a Guiné-Bissau já têm redes de 4G.



2 COMENTÁRIOS

  1. Lá vou eu de novo. A imprensa, ou ela é livre, ou não existe como tal. Ou seja, se algo não tem existência, o seu contrário, muito menos. Não sei se me fiz entender?

  2. ““Precisamos da liberdade para impedir o Estado de abusar do seu poder, e precisamos do Estado para impedir a liberdade de provocar abusos”. Karl Popper in “Televisão: um perigo para a democracia””. Atendendo a um pedido de amigos, vou discutir, em duas linhas, e somente na parte mais controversa, a citação que é atribuída ao KP. Com efeito, há, na segunda parte desta citação, um perigoso e subtil engano, que o autor deste artigo não foi capaz de vislumbrar. Com efeito, não é necessário o Estado para impedir que a liberdade provoque abusos. O Estado na sua acepção mais profunda, é o garante da liberdade, e não propriamente a imprensa que é criação recente. A função do Estado é garantir a liberdade (Leviatan). A função do Estado, ao contrário do que é dito na parte final da citação, é a de garantir haja a liberdade e nada mais que não seja a liberdade. Obviamente, neste sentido mais lato do termo, a liberdade é o oposto de abusos, seja perpetrado por indivíduos seja por instituições. É obvio que dessa acepção de Estado, não conta a noção de “estados” dirigidos ou inspirados por ideologias totalitárias (marxismo, leninismo, nazismo, fascismo, etc.). Afinal, como diziam os predecessores da filosofia alemã, a melhor forma de se viver em sociedade, é em Liberdade.

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