Liberdade de Imprensa em Cabo Verde: O Olhar dos Repórteres sem Fronteiras

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“Cabo Verde distingue-se pela ausência de ataques contra jornalistas e uma grande liberdade de imprensa, garantida pela Constituição. O último processo de difamação data de 2002. O cenário da mídia é dominado pela mídia pública, cujos funcionários são nomeados diretamente pelo governo, como é o caso do principal canal de televisão TCV e da Rádio Nacional de Cabo Verde. Se o seu conteúdo não é controlado, a prática da autocensura ainda é generalizada. RTC, o principal grupo de mídia pública, quer impor aos seus jornalistas um código de ética e conduta, incluindo várias cláusulas que limitam a liberdade de expressão dos jornalistas nas redes sociais. O desenvolvimento da mídia privada é limitado por um mercado limitado de publicidade e pela ausência de subsídios para os operadores de audiovisual. A geografia do arquipélago também dificulta a distribuição da imprensa e dos meios de transmissão em todas as 10 ilhas”, Relatório dos Repórteres sem Fronteiras – 2019

Passou-se quase despercebida entre nós, a divulgação da edição de 2019 do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, elaborado pelos Repórteres sem Fronteiras (RSF). Provavelmente haveria um clamor ensurdecedor, dos agentes de costume, se em vez de Cabo Verde tivesse subido 4 lugares no ranking, tivesse, pelo contrário, descido 4 posições.
Felizmente, para Cabo Verde, isso não aconteceu!

Esse comportamento, de alguma indiferença da nossa imprensa indígena, confirma aquela máxima de que a notícia é naturalmente “o homem mordeu um cão” e não “o cão mordeu um homem”, sendo certo que, a nosso ver, a anormalidade não deveria ser privilegiada com relação a normalidade em matéria informativa. Contudo, o tempo que vivemos é muito dado ao sensacionalismo e ao inusitado, ao populismo de todo o tipo e a exploração de fatos que possam mexer com o sentimento e a crença das pessoas, razão por que essas boas notícias sejam relegadas para um plano menor ou para uma agenda de segunda categoria porque não se encaixam nos padrões de eleição, muito ao gosto da imprensa dos dias de hoje.

Pelo relatório dos RSF ficamos a saber que, aparentemente, a situação da liberdade de imprensa no país é boa. O relatório realça um quadro legal que assegura a liberdade de imprensa, não registando situações de perseguição aos profissionais da imprensa.

Em termos de evolução da classificação de Cabo Verde, desde 2013 a esta parte, regista-se um quadro interessante:

Ano        Posição
2013 –   25 / 180
2014 –   24 / 180
2015 –   36 / 180
2016 –   32 / 180
2017 –   27 / 180
2018 –   29 / 180
2019 –   25 / 180

Pelos dados constantes do quadro, constata-se que Cabo Verde em 2019, em termos de ranking, está no mesmo patamar de 2013. O quadro mostra, ainda, algumas oscilações de posições do nosso país, que derivam um pouco de nossas ações ou omissões, mas, sobretudo, em resultado da evolução positiva de outros países, nossos competidores.

Contudo, constatam-se imprecisões no relatório que precisam ser corrigidas para que as mesmas não constem dos próximos documentos.

Em primeiro lugar, não corresponde a verdade que os trabalhadores da RTC sejam “nomeados diretamente” pelo governo. Os trabalhadores da radio e da televisão públicas, propriedade da RTC, uma sociedade anónima, são recrutados no mercado e submetem-se ao regime de trabalhadores por conta de outrem, e, portanto, não são ou não podem ser considerados funcionários públicos. Houve época em que os órgãos de comunicação social do estado eram considerados serviços personalizados do estado, e nessa altura, todos os trabalhadores da comunicação social estatal eram funcionários do estado. Esse quadro, há muito que foi alterado.

Em segundo lugar, o relatório fala em prática generalizada de autocensura, sem, no entanto, concretizar com que instrumento a mediu. A afirmação categórica, inserta no relatório, mereceria, no mínimo, um estudo sobre a classe jornalística para se aquilatar do grau de uma eventual autocensura. É preciso saber-se claramente o que leva a um jornalista a praticar a autocensura e quais os receios fundados ou imaginários que o condiciona a não dizer ou a não escrever toda a verdade na informação que presta. Deve-se, ainda, indagar se o fenómeno atinge a todos ou só a alguns, se afeta, apenas, os profissionais setor público ou se é extensivo ao setor privado, se abrange os profissionais mais antigos da mesma forma que os mais jovens, entre outros aspetos relevantes a serem considerados no estudo. Com os resultados da pesquisa conhecer-se-ia a realidade tal como ela é, e não como ela é imaginada, e em função das evidências poder-se-ia concluir ou pela sua inexistência ou existência parcial ou generalizada. Conhecidas as conclusões, elaborar-se-ia uma estratégia assente numa realidade evidenciável em números e natureza.

A situação de autocensura, tal como é descrita no relatório, significa que em Cabo Verde não temos uma informação verdadeira e fundada em fatos. E com ou dessa asserção, só se pode concluir que a informação veiculada para o público consumidor não terá a qualidade necessária e estará desvirtuada da sua essência porque não reproduz integralmente a realidade.

A autocensura, para além de omitir uma parte da verdade informativa, põe, claramente, em causa o direito à informação. Este direito constitucional deve/deveria traduzir-se na liberdade de procurar, receber e aceder a informação confiável. Ora uma informação só poderá ser considerada confiável se estiver em concordância com os princípios do compromisso com a verdade.

Citando a “Declaração Internacional sobre a Informação e a Democracia” de 2018, aprovada em Paris, a certa altura, nos diz que o “Compromisso com a busca da verdade, precisão factual e ausência de intenção de prejudicar é necessário para a integridade da informação. A divulgação de informações falsas ou incorretas ou a ocultação de informações que precisam ser conhecidas podem alterar a capacidade das pessoas de compreender seu ambiente e desenvolver suas habilidades”.

O direito à informação em Cabo Verde é e deve ser assegurado, como deriva da lei, pela Autoridade Reguladora para a Comunicação Social (ARC), competindo à essa entidade o dever de averiguar, através de instrumentos apropriados, a eventual existência da prática de “autocensura generalizada” por parte dos jornalísticas, tal como descrito no relatório internacional dos RSF.

Não se pode ter essa fama, pouco abonatória, sem que dela se tire algum proveito, mesmo que seja, apenas, a título de mero conhecimento.

Por último, a referência de que a RTC pretende impor aos jornalistas um código de ética e de conduta que limita a liberdade de expressão destes.

Parece ser um fato pacífico que qualquer empresa, incluindo a RTC, pode ter o seu código de ética e conduta, onde define os seus princípios, a sua missão e os seus valores. Como se sabe, uma empresa é constituída por um conjunto de ativos entre quais os seus trabalhadores pelo que é normal que o código de ética procure vincular os seus trabalhadores aos princípios, missão e valores da empresa.

Os responsáveis da RTC, contudo, foram longe demais, quando decidiram sair do domínio da salvaguarda dos interesses estritos da empresa para entrarem na esfera privada e particular de algumas categorias profissionais, especialmente jornalistas. Aconselhar quantas contas do facebook estes devam ter e como as devam gerir é, simplesmente, intrometer-se em dimensões que não têm nada a ver com o posicionamento da empresa face à sua missão e aos valores que defende, e é arranjar problemas onde eles deveriam ser evitados.

Analisando o Código de Ética e Conduta da RTP que inspirou, em grande medida, a de RTC, constata-se uma diferença abissal, na parte respeitante a conduta dos seus trabalhadores, onde em nenhum momento entram no nível de detalhes intrusivo como o da RTC o faz. O documento da RTP não faz, em nenhum momento, referências a jornalistas ou equipados, e a conduta exigida de partilha dos valores e princípios da empresa é dirigida a todos os trabalhadores, sem particularizar casos ou categorias.

Espera-se e deseja-se que na próxima revisão desse código sejam extirpadas essas inovações escusadas, de maneira a não prejudicar a posição de Cabo Verde no ranking mundial da liberdade de imprensa.

P.S.: Estamos já a antecipar o relatório anual do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América.

Como gostamos de dar muita ênfase ao que os americanos dizem, aproveitamos para relembrar, a alguns dos menos atentos, que os Estados Unidos da América se encontra, neste ranking mundial, em 48ª posição, bem distante da 25ª de Cabo Verde.

Ah, não nos apelidam de anti-americanos, ok?