MÁRCIO ROCHA: Vivo experiências “muito profundas” no Paraguai

0

Márcio Rocha, de seu nome completo, Márcio Miguel Tavares Rocha, é um jovem natural da Calheta, ilha do Maio, que deseja ser Padre. Está no Paraguai a cumprir um estágio missionário depois dos primeiros passos dados na Praia e em Braga.

Naquela que é a sua primeira entrevista na qualidade de seminarista, Márcio Rocha, fala-nos da sua vivência em criança/adolescente, entre Calheta e Porto Inglês, bem como da sua experiência de vida e vocacional no Paraguai onde chegou há cerca de seis meses para um estágio missionário de um ano, uma experiência que tem sido “rica e desafiante”.

Interessado em conhecer cada vez mais a realidade local, Márcio Rocha mantém contato permanente com as diversas comunidades, leva refeições a crianças que vivem deambulando pelo mercado de abastecimento de Assunção, visita crianças vítimas do cancro e reúne-se com suas mães com quem a lê e reflete sobre o Evangelho, “experiências muito profundas”, considera.

Acerca do entrevistado

Nascido a 10 de março de 1996, “dois meses antes do previsto”, Márcio Rocha cresceu na Calheta onde viveu toda a sua infância na companhia da mãe e dos seus cinco irmãos.

Como todas as crianças da sua comunidade, viveu a sua infância “rodeado” de amigos e pessoas. Brincava na rua, jogava à bola e ia ao mar, sobretudo em Baxona, comunidade dos avós maternos. “E como qualquer criança também fazia traquinices às vezes”, diz, sorrindo. Curiosamente o menino que agora quer ser Padre “não gostava” de ir à Missa, “ironia”, reage.

Em 2004, quando estuda o segundo ano do EBI, Márcio foi batizado, e no ano seguinte faz a primeira comunhão na Igreja Nossa Senhora da Luz, no Porto Inglês e em 2013 recebe o sacramento do Crisma. Na sua própria comunidade, Calheta, o menino faz os estudos primários concluídos em 2008, e avança para o secundário tendo estudado entre o 7.º e 10.º anos no Porto Inglês. Concluiu o secundário no liceu Domingos Ramos, na Cidade da Praia ao mesmo tempo que iniciava a sua formação religiosa na comunidade dos Espiritanos. Três anos depois faz as malas para Portugal onde prossegue a sua formação superior.

Nas suas declarações ao nosso Jornal, Márcio recorda “muitas pessoas” que “me marcaram e me ajudaram a dar este passo”. Destaca, sobretudo, dois grupos que segundo observa foram “muito especiais”: o dos acólitos e os Jovens sem Fronteira. “Foram importantes, mas também cada pessoa que sempre me apoiou e deixou uma palavra de alento e ânimo”, reconhece.

 

 

Está no Paraguai a cumprir um estágio missionário onde também está a conhecer a realidade missionária deste país, sua cultura e a própria diversidade desta Igreja local. Conta-nos como tem sido a sua experiência?
Márcio Miguel Rocha – A minha experiência missionária no Paraguai tem sido ao mesmo tempo rica e desafiante.

Aqui vivo com dois padres, um espanhol e um português, todos já com mais de 60 anos, o que é muito bom porque aprendo com eles, com as suas experiências de vida e missão e procuro ajustar-me aos dois, pois sou jovem e entender os mais velhos por vezes não é fácil.

Estamos numa paróquia dedicada a Nossa Senhora do Rosário, no bairro Reducto, Cidade de São Lourenço, não muito longe de Assunção que é a capital do país.

No bairro, o urbano se confunde com o ambiente rural e vice-versa. É nesta paróquia confiada aos Espiritanos que me toca fazer a minha experiência missionária que passa primeiro por conhecer e deixar-se conhecer.

O povo paraguaio sempre que vê um estrangeiro aproxima-se e pergunta: quem és, o que fazes, há quanto tempo estás aqui, entre outras perguntas. E a primeira relação começa aí mesmo. É preciso estar aberto ao diálogo pois a partir daí começam a surgir novas e sinceras amizades. Temos aqui um povo simples, que sempre convida a um “tereré” (…) e este é um momento muito especial e fraterno.

Aparentemente a pessoa pensa que não tem nada que fazer, mas a lição que aprende é que as pessoas são os mais importantes e por isso elas se juntam ao redor, e com água, aproveitam para contar as suas vidas, alegrias, anseios e necessidades, e aí é onde se conhece mais a gente. Todos tomam “tereré” do mesmo tubo, o que inicialmente causa uma certa impressão, mas o que verdadeiramente nos ensina é que somos irmãos, partilhamos do mesmo lugar.

A dança, a gastronomia, tudo é diferente, mas muito interessante.

Dizem que o povo paraguaio come sopa com a própria mão, é verdade?

Sim, aqui se come sopa com a mão.

A sopa aqui é uma espécie de pão-de-ló, mas feita de milho e queijo, sempre deliciosa, e sempre que há momentos onde há muitas pessoas, há sopa com certeza.

Ora, como missionário em experiência, é importante não apenas conhecer, mas apreciar e sobretudo viver a cultura do povo, isso marca muito.

A língua é também outro aspeto importante, os paraguaios se orgulham de ser um país bilingue. O espanhol e o guarani andam entrelaçados.

Eu pude, em um mês, aprender a língua espanhola, que utilizo no dia-a-dia para me comunicar. A princípio foi mais um ‘portunhol’, diria, mas com o tempo, fui melhorando o meu espanhol e creio que agora se entende bem.

E quanto à outra língua local, o guarani, conseguiu facilmente aprender?

Apenas algumas palavras, como por exemplo a saudar as pessoas: já digo, Mba’eichapa (olá como estás?) e Iporante ha nde? (Bem e você?)

É uma alegria para as pessoas quando lhes respondo em guarani e depois lhes digo que ali terminou o meu guarani (risos).

Guaraníes é também o nome da moeda oficial do Paraguai, e o engraçado é que aqui só se ouve falar de mil, milhões. Eu quanto tomo um autocarro pago entre 2.200 a 3.600 guaraníes.

A vida sobretudo na cidade é muito agitada, aqui em vez dos famosos “hiaces” como em Cabo Verde, existem os autocarros, por vezes velhos, que transportam as pessoas, e em certas paragens, quando o autocarro para, costumam entrar pessoas a vender coisas diversas, algo para comer, sumos, água, e alguns homens cantam e tocam as suas guitarras à espera que alguém lhes dê umas moedinhas.

Este é o lado social, digamos, desta sua experiência, e a nível religioso?

Vamos às comunidades e acompanhamos os padres para as celebrações, visitamos os doentes e ali sim descobrimos a pobreza, as dificuldades por que passam as pessoas, pois a vida não é só festa, e por vezes também implica sofrimento. Mas é tudo gente simples e que gosta da visita do sacerdote que, carinhosamente, chamam “Pa’i” (na língua guarani).

Aos sábados, a cada quinze dias, visito as crianças vítimas do cancro, num albergue de um hospital pediátrico “Acosta Ñu”. Passamos uma tarde juntas, brincámos e depois volto à casa.

Às sextas-feiras também estamos com as suas mães a ler e a refletir sobre o evangelho diário.

Também aos sábados, vou com os meus colegas de uma outra cidade levar o almoço às crianças que vivem deambulando pelo mercado de abastecimento de Assunção.

São experiências muito profundas e que sempre nos deixam a pensar e a refletir sobre o valor da vida humana e a ser agradecido. Esta é a minha experiência: ser presença de Deus no meio das pessoas que mais necessitam.

Ainda sobre a diversidade e a riqueza que é a Igreja aqui no Paraguai, dizer que é uma casa de todos, em que os leigos são de fato, os que estão à frente das comunidades, se nota uma ‘descentralização’ da paróquia que vai ao encontro das pessoas e uma pastoral social que se preocupa com todos sobretudo com os mais necessitados.

Escolheu Paraguai ou foi uma indicação dos seus superiores?

Nunca antes tinha pensado no Paraguai, foi uma decisão dos meus formadores em Portugal. Aliás ninguém sabe onde vai fazer o estágio missionário. Quando estamos quase a terminar os dois anos em Portugal, nos dizem onde vamos fazer o nosso estágio: é sempre uma surpresa.

Recorda a primeira impressão que teve quando chegou ao País? O que mais lhe tem marcado como homem e cristão?

Não posso dizer com clareza qual foi a primeira impressão, mas o que me impactou foi o modo de viver. Tudo parecia mais humano no trato, mais proximidade. Algo como que aqui somos mais simples.

Está a valer a pena esta experiência?

Sim, sim. Como homem e cristão estou a crescer muito, sobretudo quando visito o hospital, aprendo a dar valor à minha vida, a ser mais grato e a queixar-me menos. A ver as coisas com um olhar mais positivo, a superar as dificuldades da vida.

Aprendo que na missão antes que ensinar, é escutar e aprender com os outros e viver o desafio de acolher e aceitar o outro, que me mostram um Outro (Deus/Jesus/Igreja) a quem quero servir.

Antes de chegar a este novo destino passou por Portugal onde, digamos, iniciou a sua formação superior tendo em vista o sacerdócio. Fale-nos da sua experiência vocacional e como surgiu este desejo de ser Padre.

A minha vocação, ou melhor, este desejo ardente que tenho em saber o que Deus quer de mim, nasce num contexto simples de vivência da fé na minha comunidade, na Calheta, ilha do Maio.

Depois da minha primeira comunhão, comecei a interessar-me mais pelos pequenos grupos que se reuniam na Capela da zona e era uma forma de viver como cristão a minha vocação de filho de Deus, mediante o batismo.

Passei pelo grupo de cantores, leitores, legionário e por fim acólito, onde me sentia bem.

Como a gente vai-se comprometendo mais, parece que também Deus espera uma resposta maior, e com o passar do tempo sentes que há algo maior a mexer contigo, que alguma coisa não está a funcionar bem, e na medida em que vais dando os passos, sentes que tens que responder a esse apelo interior de querer dar-se aos outros de uma forma mais plena. Assim, quando pela primeira vez ouvi falar de um encontro vocacional eu quis ir. Não disse à minha mãe, nem a ninguém, tinha medo e vergonha. Que ia dizer? E se não desse certo?
E o meu coração batia com força. Mas com o passar dos tempos, o que eu queria que fosse segredo veio à luz e tive de assumir que de fato, gostaria de ser Padre.

Depois fui para a Cidade da Praia, entrei no seminário espiritano, em setembro de 2013, fiquei ali dois anos. No fim me enviaram para Portugal para iniciar os meus estudos filosóficos e teológicos em Braga. Nesta Cidade portuguesa também vivi dois anos, até setembro de 2017 quando fui enviado para o Paraguai onde estou neste momento a fazer o meu estágio missionário.

Alguém, em concreto, lhe inspira para o sacerdócio ou é mesmo resposta a uma vocação?
A vocação, penso eu, é acima de tudo uma resposta a um chamado de Deus, porém não implica que quem se sente atraído, não se deixe “inspirar” por alguém. Recordo aqui o Padre Crisogonus Amanze, que me ajudou muito a dar os primeiros passos, mas muita gente que no silêncio me marcaram e me marcam ainda hoje.

É natural do Maio onde durante muitos anos trabalharam os missionários espiritanos. Este fato pesou na sua escolha de querer ser um sacerdote espiritano, missionário?

(Risos) Permita-me, antes, o seguinte desabafo, diria. Eu não sabia nada sobre a existência de congregações religiosas nem de Padres Espiritanos ou outros. Para mim, todos eram Padres e não havia nenhuma diferença entre eles. Mas quase a entrar para o Seminário, que eu pensava que era o de São José, e não o do Plateau (onde está a casa dos Espiritanos), comecei a perceber que havia diferença entre os Padres, religiosos e diocesanos, mas, com o passar do tempo, sim, a vontade de querer ser Espiritano tem uma certa influência, sobretudo dos Sacerdotes Espiritanos que passaram pela minha ilha.

Quando terminar este ano de estágio missionário no Paraguai qual será o seu destino?

A vida de um missionário é “deixa a tua terra” mas sem saber para onde ir, mas vai confiante porque sabe Quem lhe envia. Isso para dizer que ao terminar o estágio aqui no Paraguai não sei para onde vou, nem quando, nem como (risos).

O que sei é que depois desta fase irei fazer o Noviciado que dura um ano, e é um tempo especial de estudo e aprofundamento da vida religiosa e missionária da Congregação na qual faço o meu discernimento vocacional.

Consta que o Márcio se destacou como “melhor aluno” do segundo ano do curso mestrado integrado em Teologia, no ano letivo de 2016/2017 da Faculdade de Teologia de Braga, em Portugal. Isto é sinal de muito estudo e empenho pessoal?

Quando recebi esta notícia fiquei muito feliz e a primeira coisa que fiz foi agradecer aos meus colegas que vivíamos juntos na casa do postulantado.

Se é verdade que foi um esforço e realização pessoal da minha parte – o querer levar as coisas a sério – também tenho a consciência de que o que consegui foi fruto de um esforço coletivo de muitos companheiros de caminhada que foram preparando o terreno e que acabou por dar o seu fruto.

Voltemos à sua vida religiosa. Quando é que o Márcio sentiu ou deu conta deste chamado para a vida religiosa?

Como dizia há bocado, a minha vocação nasce num contexto simples de vivência da fé na minha comunidade local, no Maio.

Dei-me conta a partir do momento em que sentia que algo mexia comigo, bem lá no fundo e que Deus, como que queria que eu me comprometesse de uma forma mais plena e sincera no serviço aos meus irmãos, quando comecei a questionar-me a mim mesmo e não encontrava respostas senão dizer “Senhor, eu não sei bem onde estou a meter-me, mas se Tu me chamas, eu quero arriscar-me” (risos).

Alguma vez duvidou da sua resposta ou confiou tudo à Divina Providência?

Eu duvidaria desta caminhada de discernimento se alguma vez não sentisse dúvidas, incertezas, medo ou insegurança. Creio que isto faz parte da vida de quem realmente quer ser feliz, qualquer que seja a sua vocação. Mas as dúvidas não são para nos fazer desistir, mas sim para acreditar mais n’Aquele que nos chama.

Naturalmente que acompanha a atualidade das igrejas em Cabo Verde. Sente que a fé está firme nestas ilhas?

Devia acompanhar mas a verdade é que estando longe e com outras preocupações o nosso país de origem fica cada vez mais longe. Acompanho sobretudo pelas redes sociais, através das partilhas dos amigos, não como desejava mas conforme as possibilidades.
Creio que a Igreja está cada vez mais dinâmica, vemos a renovação do Clero, há mais jovens Padres, são cabo-verdianos e por isso mesmo nos entendem melhor, falam a nossa própria língua e isso é muito bom.

O povo cabo-verdiano conhece a importância da Igreja e por isso creio que acredita nos seus Pastores.

Engraçado, aqui no Paraguai, com cerca de oito milhões de habitantes, esta Igreja local ainda não têm um Cardeal, por exemplo, e quando lhes digo que o meu pequeno país, Cabo Verde, com cerca de 500 mil habitantes, tem um Cardeal ficam estupefatos.

Já agora consegue acompanhar a dinâmica da sua paróquia de origem, Nossa Senhora da Luz, no Maio?

Não é fácil acompanhar a dinâmica da minha paróquia de origem. Sigo grupos de amigos pelo Facebook, nas conversas com os meus familiares e amigos pergunto sempre como vão as coisas, e falo com os jovens.

Fico feliz porque as coisas vão bem. Temos um Pároco jovem, da nossa terra, que é alegre e dinâmico. Os paroquianos sentem-se contentes com um Pastor que vive no meio do seu povo, que dança, joga, e também reza por eles e com eles. E depois o povo maiense é comprometido com o Evangelho e com a Igreja.

Que dizer aos seus aos amigos e demais gentes da sua ilha-paróquia?

Primeiro, agradecer a Deus por esta oportunidade de fazer um caminho como este. Um caminho muito enriquecedor e desafiante. A vocação é uma “aventura” que vale a pena arriscar, mesmo que um dia viesse a descobrir outra coisa.

O importante é deixar que Deus fale ao nosso coração, não fechar, mas antes abrir sempre o coração e os ouvidos à voz do Senhor Jesus Cristo.

Aos meus amigos e demais gentes da minha Paróquia também agradeço o apoio manifestado nesses últimos quatro anos desde que tomei esta ousada decisão de entrar no Seminário. Peço sempre a oração de todos para que possa ser fiel e ir até ao fim, sem nunca desistir, apesar das dificuldades e dúvidas que possam surgir no caminho. Abraço a todos no meu coração e que o Deus da misericórdia nos fortaleça com o seu Espírito Santo para sabermos discernir qual a vontade de Deus a nosso respeito.