O burocrata da cozinha

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Há dias ao tentar acender o fogão por 3 vezes consecutivas, fazendo uso do seu próprio botão, resolvi lançar mão da velha e tradicional caixa de fósforos guardada na gaveta do armário da cozinha. Digo sempre, para me desculpar, que tenho de me lembrar de chamar o técnico para cuidar disso. Pego na caixa e vejo que está ali um pauzinho, sozinho, amarelo e enfezado e encolhido num canto. Por pouco não dava por ele. Deu-me a impressão de ter rolado ainda um pouco mais para o canto mais protegido da luz. Absurdamente parecia-me assustado! Olho para a sua cabeça redonda de um vermelho terroso e quase sinto pena dele, e da caixa, pois que levando-o dali para a fogueira na boca do fogão, estava também a matar a caixa no momento seguinte. Ponho de lado a tristeza e decido incendiar o fósforo, sem piedade, espatifando a cabeça dele na lixa da caixa, linchando os dois ao mesmo tempo.

Alto aí! Páro paralisado pela brutal falta de memória que me tem apoquentado: na véspera também tinha tentado acender o fogão por várias vezes e fazendo recurso à caixa de fósforos, nada ali encontrara, tenho certeza disso, e por isso tinha corrido para o supermercado mais perto e comprei logo um isqueiro. Desses de disparo eletrónico e de cano comprido, para entregar o lume à boca do fogão, dando distância segura à mão que o segura. Fantasio que o solitário pauzinho, ao sentir a ameaça que o gesto pressagiava, escapulira para o canto mais sombrio da caixa, mas agora fora apanhado de surpresa, pois não lhe tinha passado pela cabeça que, comprado o isqueiro, ainda mantinha a intenção de lhe dar tão funesta serventia. Estava agora à minha inteira mercê, mas hesitei, um duplo coisicídio num sábado de manhã era demasiado pesado para um sentimental como eu. E esta caixa de fósforos vivia já comigo largos meses. Matar o pau e matar a caixa não faziam sentido num fim de semana. Eram coisas mais para o meio da semana ou então numa clara situação de legítima defesa: para não morrer de fome, matar o pau e a caixa, mas não era, manifestamente, o caso!

Pego no lança-chamas em miniatura e estendo o braço para incendiar a boca. Do fogão, claro. Estava decidido a apertar o gatilho, mas não vejo nenhum sinal de fogo, nem de lume bamboleante e pendurado e nem da altiva e bucal fogueira. Afinal, olhando para a quietude do meu dedo homicida, concluí que não chegara a consumar o gesto mentalmente ensaiado. No fundo, ainda não decidira: é que, se não usar o fósforo, ele é inútil, deixou de fazer sentido a sua vida! E a gaveta do armário da cozinha não é propriamente um museu. Desanimado, olho ao redor, hesitante no caminho a seguir.

E para decidir o que devia fazer, pus-me a imaginar a minha cozinha como a Administração Pública cabo-verdiana e, como um bom funcionário público, tinha que optar entre ir aos armários e arquivos, juntar papéis, caneta, carimbos, almofadas, clips, borrachas e assinaturas para despachar assuntos ou então pegar numa ferramenta tecnológica e resolver o problema. Ou seja: isqueiro ou fósforo? A nossa querida caixa de fósforos de um solitário pauzinho amarelo com bonita cabeça de vermelho terroso ou a abundante chama azul do isqueiro eletrónico de ponta? Hesitei por mais uns instantes, entre ser um velho burocrata da cozinha ou o cozinheiro inconformista que privilegia a solução e olha para os meios como meios que são, e fiz então a escolha que a racionalidade obriga: peguei no isqueiro, desta vez com firmeza, para dar lume à boca, não sem uma pontinha de tristeza, confesso, pela inutilidade superveniente das coisas que os tempos vão impondo, umas vezes de mansinho sem nos darmos conta, e, outras, um pouco mais abruptamente que nos põe o coração em sobressaltos, mas … é mesmo assim a vida, a inquietude de hoje é a calmaria que nos aguarda uns passos mais adiante.



2 COMENTÁRIOS

  1. Li, tornei a ler, e, continuo lendo e compreendo a sua narrativa. Porem, o Sr. Dr. nos habituou-nos a ser, humilde, frontal e de muito bom-senso. Todavia, gostaria que fosse mais explicito.
    Rogo a Deus que alguem, do OPais.cv nao censure esse, como convem, humilde comentario.

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