O programa ocultado

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1. Uma coisa é certa: a existência de um Estado de Direito Democrático, com os seus valores fundamentais de defesa da dignidade humana e da liberdade, de eleições livres e transparentes, de separação de poderes, independência dos tribunais e da incorporação do direito internacional comum, projeta-se – tem que se projetar – na política externa do Estado. Os valores constitucionais de CV não podem ser resumidos aos cidadãos e instituições na ordem interna, pois assentam em comandos que vinculam todos os atores políticos na sua atuação enquanto representantes da República! Numa palavra, CV não pode ter 1 rosto na sua ação interna e ter 1 outro, ou mesmo 2, 3 ou 4 rostos na sua ação externa, consoante as conveniências ou cumplicidades políticas conjunturais. Uma política externa pragmática sim, mas sempre abalizada por um quadro político que contenha o núcleo essencial dos nossos valores constitucionais, pois só ela tem a virtualidade de conferir previsibilidade às nossas ações políticas e gerar confiança nos nossos parceiros.

2. É evidente que é impossível o exercício de agradar a grego e troianos ao mesmo tempo. Quando o Governo de CV nos primeiros anos independência agradou o regime do apartheid com a permissão de aterragem de aviões da África do Sul, desagradou profundamente um segmento significativo de países e movimentos africanistas. Só o cinismo diplomático pode disfarçar esse desagrado, de consequências duradouras. Esse aparente não-alinhamento, alinhava-se perfeitamente com os interesses de CV e do regime do apartheid. A recusa da estação de descanso à frota da URSS que não pôde deixar de desagradar as autoridades russas, alinhou-se perfeitamente com os interesses das potências ocidentais na ocasião. As atrocidades oriundas de quadrantes políticos mais alinhados com a ideologia que defendemos, não pode fazer o Estado de CV desalinhar com os seus valores fundamentais plasmados na Constituição da República. Uma dada situação relevante na cena internacional, implica um posicionamento, expresso ou tácito, por mais que se autoproclame como não-alinhado. Até às saídas cirúrgicas para a casa de banho no momento de votação de certas matérias melindrosas, exprime um posicionamento político, agradando a uns e desagradando a outros, ou, o que é pior, desagradando a todos. O não-alinhamento tem consequências, não é uma vacina contra os prejuízos!

3. Obviamente que o se passou com a inviabilização da presidência da comissão da CEDEAO não pode ser o resultado de 3 anos de governação. Tem causas mais fundas, umas ligadas ao que somos, outras ligadas ao que temos feito e não temos feito há décadas e outras ainda ao que se passa intramuros dessa sub-região africana! Isto nem quer dizer que se fez tudo bem ou que não se podia ter feito melhor, mas a crónica dos resultados dessas eleições já tinha sido há muito anunciada. A boa fé obriga a reconhecer isso! É evidente que um treinador de bancada sempre faria melhor se em campo estivesse – e temos que lhe perdoar a imodéstia de assim pensar!

4. O governo de CV na fase administrativa não se terá oposto a que o processo de extradição do SAAB tramitasse para a fase judicial. Assim terá procedido com base no parecer da Procuradoria Geral da República e na decorrência de compromissos que resultam da sua condição de CV ser um membro da Interpol. O multilateralismo também tem o seu preço, como tem as suas vantagens! Ficámos a saber que, no entendimento de uns, seria preferível CV proceder de modo diverso, ou seja, contrariar o parecer da PGR e impedir os Tribunais de julgarem o processo. E chamar-se-ia a isso … “não-alinhamento”. Cada cabeça sua sentença! Parece que prevaleceu a tese de que não se está perante uma questão predominante política, mas sim de natureza judiciária e que deveria ser apreciada no quadro da lei vigente em CV e por órgãos independentes que são os tribunais. Opção marcadamente ideológica seria impedir a apreciação do pedido pelos tribunais cabo-verdianos. As ações da República num Estado de Direito não se guiam apenas por critérios estritamente políticos.

5. A política externa não deve ser julgada pelos episódios, reais ou imaginários, mas fundamentalmente pelos resultados globais no quadro da sua missão essencial: prestigiar o Estado de CV, contribuir para uma ordem internacional justa, de paz e diálogo entre as nações e potenciar as oportunidades de mobilização de recursos para o desenvolvimento. Para lá das críticas sempre legítimas que podem ser feitas a esta ou aquela ação do Estado, ninguém de boa fé pode dizer que hoje o Estado de Cabo Verde perdeu prestígio na cena internacional ou está a causar perturbações na ordem internacional ou que não está a potenciar a capacidade de aproveitamento de recursos para o desenvolvimento.

6. Um programa de governo com certeza não veicula com rigor científico os conceitos de antropologia cultural. Quero crer, no entanto, que a referência à mestiçagem (independentemente das cargas simbólicas que podem transportar e quero relembrar aqui a obra do Prof. João Lopes Filho, Mestiçagem, Emigração e Mudança in Africa 29/30, SP- USP) pretendeu pôr em realce o cabo-verdiano como um povo na rota de vários continentes, de cruzamento de culturas, de vocação universalista e por isso dotado de um capacidade ímpar de fazer pontes, de unir, de moderar os extremos, por ser síntese da diversidade. É uma virtude que merece ser realçada, sem preconceitos ideológicos que pretendam nos arrastar para realidades extraordinárias, mas estranhas ao nosso modo de estar e de sentir no mundo. Não devemos ter complexos do que somos e nem sentirmo-nos inibidos de verbalizar o processo histórico da nossa formação enquanto nação.

7. Por fim, transcrevo, pequenos excertos do programa de governo respeitante à política externa, para completar o quadro parcialmente traçado: “Cultivar uma política de boa vizinhança, valorizando a nossa dimensão africana, assente no respeito e interesse mútuos, no diálogo, na concertação e na busca de plataformas de entendimento mutuamente vantajosas com os Estados da África, nomeadamente do norte e do oeste e os Estados ou regiões insulares do Atlântico médio, salvaguardando as especificidades de Cabo Verde.

Cabo Verde deve repensar completamente a sua política para África, a ela dedicando uma atenção particular, em ordem a: Melhor conhecer a realidade política, económica, social e cultural do continente; reforçar substancialmente o diálogo político e estreitar as relações políticas com as nações africanas; promover o intercâmbio cultural com África; Aprofundar as relações económicas com o continente; Participar efetiva e ativamente, sem ambiguidades, e com capacidade de influenciação positiva nas instâncias de construção de soluções sub-regionais e regionais, que propiciem mais liberdade e democracia e uma maior integração económica e segurança regionais. Por outro lado, a inserção na CEDEAO e as relações com países locomotivas do continente, como Angola, a Nigéria e a África do Sul, devem ser transformados por Cabo Verde em oportunidades para a atração de investimentos e recursos financeiros, de que tanto carece, para a criação de mercados para uma produção nacional de bens transacionáveis e para o País desempenhar a função de plataforma de intermediação do Mundo com a África. As empresas são o elemento-chave dessa inserção”.



4 COMENTÁRIOS

  1. Dedico este trabalho aqueles que acham que o saber está monopolizado em Cabo Verde. O monopólio do saber existiu de 1975 a 1990, no partido único e todos sabemos e conhecemos aqueles que sabiam tudo e nunca tinham dúvidas. A diplomacia sempre viveu de adaptações a todas as circunstâncias e a cada momento. Quem aplaudiu o outro documento? Os adeptos do monopólio do saber e do partido único.

  2. Dico, para nós os amigos, Eurico Monteiro não gosta de elogios. A verdade é que, sempre que fala, sempre que escreve todo os castelo de areia tambarina (ignorância) vai abaixo. Foi assim nos anos noventa, foi assim no parlamento. Dico dispensa elogios, basta ler. Recentemente desmontou a mentirinha do SOFA.

  3. Se há coisas que só Dico Monteiro consegue, essa coisa é colocar de cócoras o paicv. De facto, quando o governo e regime do paicv abriram as portas ao regime segregacionista e racista do apartheid da África do Sul, a pedido do EUA, para que os aviões da África do Sul adoptassen a ilha do Sal como sua base operacional na África Ocidental, o paicv alegou interesse público para fechar os olhos ao regime racista do Pieter Botha. Janira era bebé, seu pai ministro do regime do paicv é Zé Maria chefe da organização juvenil do paicv, a jaacv. Mais, o paicv permitiu que um bairro inteiro na ilha do Sal passasse a chamar Pretoria, nome da capital política da África do Sul. Só que terminado o regime de apartheid, o governo de maioria negra do ANC a primeira coisa que fez foi dar um tremendo pontapé na bunda do governo do Zé Maria, transferindo a base operacional do SA para o Senegal. Hoje os hipócritas do paicv fingem cinicamente esquecer a história, no que contam com uma grande omissão do. MpD.

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