O Toxicodependente: Doente ou Criminoso?

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“O uso de drogas é e sempre foi uma realidade em todas as sociedades. Os governos travam há tempo demais uma guerra equivocada contra o mercado de drogas e as pessoas que as utilizam, aplicando sanções desproporcionais, injustas e inteiramente desnecessárias. As evidências do mal causado por leis punitivas são irrefutáveis. Os governos não podem mais ignorar a necessidade de adotar uma nova abordagem” – Relatório da Comissão Global de Políticas sobre Drogas – 2016

É um fato assente e pacífico que a toxicodependência é um grave problema de saúde pública a nível mundial, e consequentemente, também, em Cabo Verde, e sendo encarada nessa perspetiva, as políticas públicas têm que ser harmonizadas à essa realidade complexa, tal como ela existe e não como a que se deseja, em nome da tolerância e do pragmatismo.

Entendida a toxicodependência como um problema de saúde pública e o toxicodependente como um doente, abre-se o caminho para o desenvolvimento de políticas que promovam o acesso dos toxicodependentes à prevenção, ao tratamento, aos programas de redução de riscos e à reinserção social, limitando ou eliminando as barreiras sociais e culturais, onde a discriminação e a estigmatização aparecem como os principais vetores da marginalização social do dependente de drogas.

Em países de epidemia do VIH do tipo concentrado como o nosso, recomendam-se estratégias direcionadas para as populações mais afetadas que se constituem como os principais focos da disseminação do vírus da SIDA.

No nosso caso, a prevalência do VIH na população usuária de drogas é de 3.1% ou seja: mais do que 3 vezes maior do que população geral, fato que requer uma atenção redobrada dada a situação de vulnerabilidade associada à sua condição.

Em Cabo Verde, muito trabalho tem sido feito no sentido de responder aos problemas suscitados pelo consumo de drogas, havendo a assinalar como respostas públicas, a promoção de programas de prevenção, de tratamento e de reabilitação social dos usuários de drogas. As respostas têm sido dirigidas àqueles que ainda não entraram no consumo e para aqueles que já estão no consumo, e que manifestam vontade de se submeter a tratamento. A questão que se coloca, é, especialmente, para aqueles que estão no consumo e não manifestam vontade de abandonar o uso de drogas, ou porque não querem ou porque não conseguem.

Para esse subgrupo, muitos países adotaram a chamada estratégia de redução de riscos, sobretudo para fazer face à epidemia do VIH e às outras doenças transmissíveis como as Hepatites e a tuberculose que constituíam e constituem um problema grave de saúde nessa população.

Em Cabo Verde, embora no plano teórico se fala em redução de riscos, atividades que constam quer do Plano Estratégico de Luta contra a SIDA – 2017-2020 quer no Programa Nacional Integrado de Luta contra Drogas e Crimes Conexos 2018-2023, todavia, o quadro legal, tal como existe atualmente, não permite atividades de redução de riscos sob pena de violação da lei.

O artigo 20º da lei da droga em vigor estabelece que “Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, cuja pouca quantidade permita considerar que se destinavam ao consumo pessoal, é punido com a pena de prisão até 3 meses ou multa até 30 dias”. Infere-se desse normativo que o consumidor de drogas, quer seja a título recreativo quer seja terapêutico e quer seja dependente, o fato de as deter ou as consumir comete um crime.

Essa opção proibicionista da nossa lei – e não devamos esquecer-nos que ela foi aprovada em 1993 – nos parece em sintonia com o contexto em que então se vivia, em que se acreditava piamente que era possível acabar com o consumo de drogas, através da punição severa dos consumidores.

Essa abordagem ou estratégia revelou, para além de alguma ingenuidade, também muita falta de realismo, isso porque o proibicionismo, já foi e ficou suficientemente demonstrado, em vários momentos e situações, não tem grande impacto sobre os índices de uso de drogas.

O número de consumidores a nível mundial cresceu quase 20% entre 2006 e 2013, totalizando, segundo ONUDC, 246 milhões de pessoas.

Em 2015, segundo o Relatório Mundial da ONUDC, cerca de 250 milhões de pessoas usavam drogas. Dessas, cerca de 29,5 milhões, 0,6% da população adulta global, apresentavam transtornos relacionados ao consumo de drogas, incluindo a dependência.
Portanto, a ilusão de acabar com o consumo de drogas pela proibição do seu uso já faz parte do passado, ninguém, hoje, acredita na eliminação do consumo de drogas, e muito menos, na existência de uma sociedade sem drogas.

Países que nos são próximos como Portugal e o Brasil abandonaram a via da criminalização e da punição do consumo e da pose para uso pessoal e adotaram outras soluções.

No caso de Portugal, desde 2001, todas as drogas foram descriminalizadas para consumo pessoal. Quem estiver na posse para consumo de qualquer droga não incorre em processo penal, mas em sanção administrativa acompanhada de indicação para o acolhimento por parte de Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência. As CDT´s são compostas por três pessoas: uma, da área jurídica, indicada pelo Ministério da Justiça e as outras duas, das áreas de saúde, psicologia e assistência social, recomendadas em conjunto, pelo Ministério da Saúde e a autoridade responsável pela Política sobre Drogas.

Em relação ao Brasil, em outubro de 2006, entrou em vigor a Lei 11.343/2006, popularmente chamada, na época, de Nova Lei de Drogas. A principal inovação dessa lei foi a despenalização explícita – ou seja, a não aplicação de penas privativas de liberdade – da posse de drogas para consumo próprio. A mesma lei igualou, pioneiramente, a condição dos indivíduos que plantam drogas – particularmente, a maconha – para consumo pessoal à daqueles que as obtêm de outras formas, sendo despenalizada também essa prática.

Cabo Verde, como membro da CPLP, tem agora uma grande oportunidade para inovar nessa matéria, tendo em conta que se encontra em pleno processo de revisão da lei da droga de 1993. É preciso que se deixe para trás a visão conservadora e punitivista do consumo que enfermou a lei em vigor, para se adotar soluções mais consentâneas com a realidade atual, em que os direitos humanos dos consumidores de drogas são respeitados, e a sua condição de usuários não lhes conferir o estatuto de criminosos.

Ademais, é preciso avaliar o real impacto que a lei em vigor teve na redução do consumo; se o castigo nela consagrado persuadiu, de forma evidente, as pessoas para que não experimentassem ou não consumissem drogas; ou se a finalidade do dispositivo legal criado foi, plenamente, atingida ou se foi, simplesmente, ignorada pela comunidade consumidora.

Seria um ponto de partida importante para se introduzir a racionalidade na política de drogas no país, concentrando atenção e meios no combate a grande traficância e a oferecer cuidados aos que são afetados pelo consumo de drogas.

É isso que muitos países fizeram!

Ora, a implementação de programas de redução de riscos, em qualquer parte do mundo, implica, inevitavelmente, a existência de um quadro legal que não criminaliza o consumo e o porte de drogas para uso pessoal, sob pena de as ações de redução de riscos constituírem atividades de colaboração com a prática criminosa ou de apoio a atividade delituosa.

A estratégia de redução de riscos admite a existência de uma franja de consumidores que, não querendo ou não podendo deixar de consumir drogas, carecem de respostas específicas, sobretudo em matéria de acesso a cuidados de saúde, por não terem acolhimento nas respostas tradicionais, por que estas centradas ou focalizadas, essencialmente, na abstinência.

Assim, em termos de redução de riscos nos usuários de drogas, as intervenções devem centrar-se na saúde do consumidor e nas mudanças que têm de ser operadas na forma de consumo ou nas práticas de riscos, influenciadas pelo uso de drogas que podem causar danos para a sua saúde. Daí a preocupação das autoridades sanitárias com a transmissão do VIH, da tuberculose das hepatites e outras doenças que derivam diretamente da forma como se consome o produto e para o qual se deve trabalhar com o usuário para a necessária mudança em prol da sua saúde.

Mudança feita com ele, dentro da sua capacidade e ritmo de respostas, e não algo que lhe seja imposto e para o qual ele não está em condições de aderir ou de se comprometer consciente e voluntariamente.

P.S.: Para aqueles que defendam a punição e criminalização dos consumidores de drogas fica aqui um alerta: no dia que tiverem um filho dos 18 anos, que, por vicissitudes da vida, tiver caído no mundo da droga, seguramente saberão o quanto dói ter um filho, e ele estar na condição de usuário de drogas. Os custos que acarretam para o indivíduo e para a família são incalculáveis, mas eles se tornarão, ainda, inimagináveis se se lhe acrescentar à sua condição de usuário de drogas, o de criminoso.

É o fim!



2 COMENTÁRIOS

  1. O Toxicodependente: Doente ou Criminoso? Ora aí está boa polémica. Muitos países proíbem o consumo (com sucesso ou não), a ponto de essa proibição beirar a liberdade individual, para que ninguém venha mais tarde defender a ideia do toxicodependente doente ou coitado, e com isto o sujeito ser considerado inimputável ou não. Países dirigidos por regimes autoritários tendem a seguir este caminho. A repressão também é questionada porquanto o sujeito é livre para fazer da sua vida o que bem entender, desde que coloca em risco a vida e integridade física, moral e patrimonial dos outros. Isto, do ponto de vista meramente formal, do Direito. Agora, sabe-se que os primeiros charros, são sempre de livre e espontânea vontade, no perfeito gozo do livre arbítrio. Ora não tendo o sujeito a consciência do risco, o mais provável é a toxicodependência. Deve Estado criminalizar ou não? Depende, porém se criminalizar, quem consumir é criminoso, seja dependente ou não. A Lei considera delito é delito. Pode questionar a lei. Chegando a fase de toxicodependência, coloca-se a questão de o mesmo puder ou não, ser considerado doente. Não me meto nessa discussão. A verdade é que doentes também podem cometer crimes graves. Logo (…)!

  2. O Toxicodependente: Doente ou Criminoso? Ora aí está boa polémica. Muitos países proíbem o consumo (com sucesso ou não), a ponto de essa proibição beirar a liberdade individual, para que ninguém venha mais tarde defender a ideia do toxicodependente doente ou coitado, e com isto o sujeito ser considerado inimputável ou não. Países dirigidos por regimes autoritários tendem a seguir este caminho. A repressão também é questionada porquanto o sujeito é livre para fazer da sua vida o que bem entender, desde que não coloque em risco a vida e integridade física, moral e patrimonial dos outros. Isto, do ponto de vista meramente formal, do Direito. Agora, sabe-se que os primeiros charros, são sempre de livre e espontânea vontade, no perfeito gozo do livre arbítrio. Ora não tendo o sujeito a consciência do risco, o mais provável é a toxicodependência. Deve Estado criminalizar ou não? Depende, porém se criminalizar, quem consumir é criminoso, seja dependente ou não. A Lei considera delito é delito. Pode questionar a lei. Chegando a fase de toxicodependência, coloca-se a questão de o mesmo puder ou não, ser considerado doente. Não me meto nessa discussão. A verdade é que doentes também podem cometer crimes graves. Logo (…)!

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