RESCALDO DO SOFA: Que Lições?

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O processo SOFA, se assim o podemos chamar, trouxe à ribalta alguns aspetos, cujos contornos revelam pouca ponderação que, pelos nossos 27 anos de vivência e maturação democráticas, pensávamos que já os tínhamos ultrapassado. A nossa crença (convicção?) funda-se na ideia de que com o nosso crescimento como país, com a consolidação das instituições e com a experiência e a cultura política acumuladas, estaríamos a salvo dessas peripécias.

Embora o assunto seja sensível e, naturalmente, gerador de controvérsias, talvez, e, exatamente, por causa disso, deveria ou teria de haver mais cautelas por parte dos atores mais diretamente envolvidos no processo, nomeadamente, o governo, os partidos com assento parlamentar e o Presidente da República.

Eram dispensáveis algumas cenas, quer antes quer durante e quer, ainda, depois do acordo ratificado, onde alguns atores não se revelaram a altura das circunstâncias, face a uma matéria complexa, delicada e que exigia uma postura compatível com a sua complexidade: nalguns faltaram o sentido de Estado e noutros o sentido de responsabilidade.

Em matéria de política externa, e, sobretudo, em questões atinentes a acordos internacionais que vinculem o Estado de Cabo Verde, e não os governos que conjunturalmente se encontrem no poder, deveria haver uma ampla auscultação, envolvimento e, se possível, um consenso, no essencial, sobre a matéria em pauta, de maneira a evitar a cacofonia institucional ou a campanhas de intoxicação de quem se esperaria, dado ao seu estatuto de ser do arco de poder, outro tipo de atitude ou então um comportamento mais compaginável com as suas responsabilidades.

O SOFA é mais um problema político do que jurídico, e na ausência de coragem para se assumir, politicamente, a oposição ao acordo, diverge-se, empolando a questão jurídica.
Aliás, estamos convencidos que para aqueles que se escondem por detrás das questões jurídicas, mesmo que o acordo venha a ser considerado constitucional, vão continuar a ser contra, mesmo que publicamente não o venham a assumir.

Contudo, achamos que o debate democrático seria muito mais benéfico e interessante, se se imperasse a transparência nas posições políticas, em coerência com os princípios e valores que cada partido defende, pois, só assim a política e a atividade política fazem sentido. Mete dó ver atores políticos, que não votaram contra a medida, virem a praça pública, num exercício de demagogia e populismo, responsabilizar outros atores que não rejeitaram o acordo por eventuais consequências que possam advir da sua implementação. Esquecem-se olimpicamente que com o seu voto de abstenção viabilizaram a aprovação do documento, e que são igualmente responsáveis pela sua existência no nosso ordenamento jurídico.

Ai se a irracionalidade e a falta e coerência matassem!

Deste processo SOFA há várias conclusões a tirarem-se e alguns ensinamentos a preservarem-se para que situações semelhantes não voltem a repetir-se.

Da parte do governo:

Em matéria de política externa, sobretudo em relação a grandes questões que possam vincular o Estado de Cabo Verde, manda o senso do equilíbrio, que essas matérias sejam objeto de um consenso entre os atores políticos e, em especial, entre as instituições do Estado que têm uma palavra no processo. Na ausência de consenso, ao menos, que haja ou seja assegurada uma maioria confortável que dê o necessário suporte político e amparado institucional à medida ou ao acordo.

Sem dúvida que o governo está investido de poderes para negociar os acordos internacionais em nome do Estado. Negociar em nome do Estado, sendo este constituído por várias instituições que têm uma palavra sobre o assunto, significa que o governo as deve envolver e as deve informar, tornando-as parte de um processo, evidentemente, pilotado por si.

Ouvir as posições ou receber eventuais inputs, sobre a matéria, da parte do Presidente da República, do Parlamento, através dos líderes dos grupo políticos nele representados, das instituições que, diretamente, vão estar implicadas na implementação do acordo, é fundamental, visando gerar uma boa base de apoio, bem como o de criar os alicerces para uma boa condução e pilotagem do processo, e sobretudo para se legitimar, enquanto representante do Estado, e mandatado para acordar em seu nome, vinculando, em consequência, os demais integrantes do sistema.

O trabalho de auscultação e articulação produzido, antes e durante as negociações, é essencial, até para evitar algumas críticas que, nesses casos, sempre acabam por aparecer, ou por populismo ou demagogia, mas, mesmo assim, jamais seria sob pretexto de não ter sido ouvido ou envolvido.

Da parte do Parlamento:

O Parlamento como instância que aprova, por força das suas competências, os tratados e acordos internacionais, deve ser auscultado, no quadro da estratégia de harmonização da posição do Estado de Cabo Verde.

Algumas forças políticas, representadas no parlamento, podem até não estar de acordo sobre a matéria, o que é normal em democracia, mas devem explicitar claramente em que matéria estão contra e por que razão. Se há uma maioria que aprova e que assume as responsabilidades pela aprovação, cabe a minoria, democraticamente, aceitar a decisão, esperando a sua oportunidade para quando for governo vir fazer melhor ou alterar o que foi feito agora.

Não se pode é montar guerrilha permanente sobre uma matéria que envolve outro Estado, só porque se têm posição política diferente ou porque se ganha alguma simpatia momentânea de alguns setores. Assim, pior que não ter posição clara, é mostrar-se indisponível para conceder o benefício da dúvida a posição contrária, que conjunturalmente representa o Estado de Cabo Verde.

No ponto em que as coisas ficaram (de não consenso), não deixaram espaço, para que num cenário de as coisas funcionarem bem, todos possam colher os louros ou baterem palmas, ou, ainda, fazerem uso daquela estafada expressão: Cabo Verde ganhou!

Quem aspira ser governo não pode, na oposição, ter ou sustentar posições que um dia, sendo poder, lhe pode vir a custar caro. É preciso, mais do que isso, é um imperativo, construir uma cultura política de responsabilidade e sentido de Estado, para que a política e ação política sejam claramente identificados com as necessidades do país, e, consequentemente, menos permeável ao populismo e à demagogia.

Da parte do Presidente da República:

O Presidente da República fez uns reparos ao processo SOFA que nos pareceu pertinentes. Talvez a forma como o fez não tenha sido mais feliz. Realmente, as questões de Estado, que envolvem a participação de mais do que um dos seus órgãos, devem ser tratadas e geridas de forma adequada e consensual se possível.

Mas a grande lição a tirar disso, é que o Presidente da República, em regra, não deve pronunciar-se publicamente sobre matérias sobre as quais recaem a sua intervenção final, ou pela promulgação ou pela ratificação, evitando, assim, criar falsas expetativas ou dando azo a especulações de todo o género.

Contudo, o Chefe de Estado ratificou o acordo, após a sua aprovação, quer pelo governo quer pelo parlamento, e fez um pronunciamento esclarecedor à nação, justificando as razões e os fundamentos que o levaram a ratificar o documento.

Não pediu a fiscalização preventiva da constitucionalidade do documento porque entendeu, no quadro do seu julgamento que lhe compete fazer, que não havia matéria que lhe suscitasse dúvidas de constitucionalidade.

Houve quem advogasse a tese que o Presidente da República, embora não tivesse dúvidas de constitucionalidade, tendo ele conhecimento que havia setores que teriam manifestado dúvidas, que ele, em nome desse clamor, deveria suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade.

Essa tese é no mínimo pouco aceitável, isso se considerarmos que alguns que reclamaram o intervencionismo do Presidente, os próprios têm mecanismos para suscitar a questão da constitucionalidade, quando e como o queiram fazer.

Então, qual a razão para que esses apoiantes da questão da inconstitucionalidade empurrarem o Presidente da República para solicitar a fiscalização preventiva quando o podem fazer?

Eis a grande questão!

Da parte do Tribunal Constitucional:

A fazer fé no pronunciamento tornado público por um dos atores que levantaram a questão da constitucionalidade, o processo deverá chegar ao Tribunal Constitucional para este se pronunciar sobre as normas concretas sobre as quais recaem dúvidas de inconstitucionalidade. Desconhece-se, por enquanto, quais serão essas normas do acordo que serão objeto do pedido de fiscalização abstrata de constitucionalidade ao Tribunal Constitucional.

Seguramente o Tribunal Constitucional vai ter uma batata quente nas mãos para descascar, sendo, quase certo, que um dos seus juízes vai declarar-se impedido, em virtude de já se ter pronunciado, publicamente, sobre o assunto, através de um parecer, produzido ainda antes de ser eleito como juiz do TC.

De qualquer forma é bom ter sempre presente que as normas concretas que forem solicitadas ao Tribunal para se pronunciar, e em caso deste as declarar inconstitucionais, deixarão de vigorar no ordem jurídica interna, e consequentemente o acordo ficará “amputado” desses aparentes “anticorpos”.

Contudo, é bom estarmos ciente de que o acordo não diz respeito apenas à parte cabo-verdiana. Existe uma outra parte que irá certamente analisá-lo, certamente ponderará sobre o impacto das normas subtraídas, e verificará se ainda se está dentro do mesmo acordo ou perante um outro.

A nosso ver, não se deve, de todo, descartar-se o cenário da denúncia do acordo, do lado de quem se sentir ou se considerar lesada nos seus interesses ou na sua boa-fé negocial.

Em conclusão:

As lições a tirar deste processo são muitas.

Contudo, temos muitas dúvidas, que no atual quadro de relações quizilentas políticas-partidárias e de fraca cultura de compromisso, uma avaliação criteriosa e objetiva seja possível fazer-se para que situações futuras fossem melhor geridas e produzissem melhores respostas.

Quanto a nós, já está a passar da hora de questões de Estado serem tratadas com sentido e responsabilidade de Estado.

Sem isso, não temos futuro!



2 COMENTÁRIOS

  1. Discordo do JAR, em como o SOFA se converteu num problema. Não, alguém decidiu ver na solução problema. A realidade pode ser vista na perspectiva de problema ou na perspectiva de soluções. O PAICV e PR viram a mesma realidade numa perspectiva de problema. Ambos terão de conviver com este problema. A meu ver, a trapalhada maior veio da parte do PR.
    Ninguém sabe muito bem porque razão, decidiu o PR entrar no jogo do PAICV
    Alimentou na comunicação social clima de beligerância em relação ao governo até o último instante e fez convencer o PAICV crer que seria possível reverter o jogo na secretaria. Terá havido algum acordo para tramar o Governo? A verdade é que o PAICV acusa o PR de uma espécie de infidelidade conjugal. O Governo, este agiu na perspectiva de soluções. Colheu os louros. No último esforço, o PR tentou melar as relações com o USA. Quanto ao PAICV, nada a dizer. Cada vez pior, mas nada que o constranja.

    • Não sei por que razão as pessoas estejam a declarar um determinado Conselheiro do TC, à partida impedido pelo facto de ter dado o seu parecer anos atrás. Não é nítido e nem parece ser lógico que caso o assunto chagar ao TC esse Juiz se declare impedido. Quer dizer, se nem sequer sabemos quais são as normas, irão sr submetidas á apreciação da constitucionalidade ou não, já conhecemos a posição de um determinado Juiz. Assim não.
      Ademais, esse Juiz emitiu um parecer individual, coisa muito diferente de vir agora discutir, eventualmente o mesmo assunto, assunto entre os seus pares, tanto mais que no final da discussão, E ele pode sempre votar, ainda que vencido.
      Esse Juiz em referência é um homem de uma cultura e lucidez invulgar, não precisa de palpites e nem de ninguém para tentar mostrar ou barrar-lhe o caminho. Quando chegar o momento, se chegar, ele saberá como se posicionar, mas condicionado ele não está.

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