STJ adia por mais um tempo a morte política de Francisco Carvalho.

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Li, com algum espanto, a notícia publicada pelo Jornal Santiago Magazine sobre o indeferimento da impugnação administrativa feita pelos vereadores e deputados municipais do MpD ao orçamento e plano de atividades para 2023, por falta de legitimidade dos impugnantes. Uma espécie de “não têm nada a ver com isso”. Este “ataque” cabe a outros e não aos que se deram o trabalho de o fazer.

Os acórdãos do STJ merecem sempre o nosso maior respeito, pois só quando discordamos com respeito (o que não implica subserviência) podemos continuar a manter a credibilidade do nosso sistema de justiça, como elemento estruturante do Estado de Direito Democrático em que vivemos.

A minha discordância expressa nesse texto não desconsidera a obrigação de proceder a uma leitura ainda mais atenta e detalhada de todo o texto do acórdão e a uma eventual reanálise de pormenor, mas permito-me agora escrever sobre a fundamentação jurídica primeira que estará na base da recusa de conhecimento da matéria impugnada.

Trata-se de um erro manifesto, a meu ver, e passo a explicar em linguagem simples para ser entendida pela maioria dos interessados.

O STJ diz uma coisa que parece irrebatível: não pode um membro de um órgão colegial impugnar judicialmente uma decisão desse órgão colegial, salvo quando a decisão disser respeito diretamente a esse membro e tenha, portanto, afetado os seus direitos.

Podemos dizer numa linguagem simples: a legitimidade processual é aferida pela posição do sujeito em relação ao pedido que formula à instância judiciária, para se aquilatar, pela causa que invoca, do seu interesse atual, direto e intenso.

Imaginemos que a Câmara Municipal delibera construir um túnel que liga Terra Branca a Palmarejo. O vereador, que votou contra, entende que o túnel põe em risco a segurança das habitações na Terra Branca ou que os custos obrigam a endividamento municipal acima do limite previsto pela lei. Não pode impugnar! O vereador ou vereadores que votaram contra não são titulares de nenhum direito ou interesse que a lei quer proteger com a impugnação da decisão de construir o túnel. Os moradores da Terra Branca sim! Os munícipes sim! E o Ministério Público, por ser o defensor da legalidade democrática.

Imaginemos também o caso de um projeto de orçamento aprovado pela Câmara Municipal e levado à Assembleia Municipal com votos contra dos vereadores. Vamos supor que os vereadores alegam que é um mau orçamento, que não resolve os problemas dos municípios e dos funcionários municipais ou até que não respeita os limites do endividamento fixados por lei. Com alguma reserva (apenas para esta segunda causa de pedir) admito que também esteja vedado aos vereadores ou mesmo aos deputados municipais a impugnação judicial da deliberação, exatamente com o mesmo argumento: não são titulares de direitos ou de interesses legalmente protegidos pelas normas violadas. Até aqui tudo bem!

No caso noticiado pelo Jornal Santiago Magazine estamos a falar disso? Não, claramente que não! Estamos a falar de coisa bem diversa e que afeta de forma ostensiva e irremediável direitos legalmente protegidos dos eleitos municipais, no caso, dos vereadores que têm direito à informação prévia, discussão e votação dos orçamentos municipais. Esses direitos decorrem do mandato popular que lhes foram conferidos, para discutir e decidir pelo voto o sentido e substância do orçamento que entendem mais adequado para o Município da Praia, que representam.

A Camara Municipal é constituída por um Presidente e por Vereadores eleitos por sufrágio directo, universal, livre, igual e secreto – artigo 83º do Estatuto dos Municípios. E compete à Câmara Municipal aprovar o projeto do orçamento, os planos e programas municipais (al. r. do nº 2 e b. do nº 3, todos do artigo 83 do EM. Mais ainda (no. 5). Compete à Câmara Municipal elaborar e apresentar à Assembleia Municipal proposta e pedidos de autorização relativas às matérias que carecem da aprovação da Assembleia. E o Presidente é obrigado a executar as deliberações tomadas pela Câmara Municipal al. b) do nº 1 do artigo 98º do EM.

Ora, se o Estatuto do Município e a Lei n.º 79/VI/2005 de 5 de setembro (que aprova o regime financeiro das autarquias locais) atribuem de forma absolutamente clara à Camara Municipal o poder de aprovar o orçamento municipal, despiciendo até se torna fazer sobressair o direito de participação dos membros da Câmara Municipal na discussão e votação (e de informação prévia nos termos do artigo 87º do EM) que conduza à aprovação ou não da proposta de orçamento municipal. Direito de construção da proposta de governação local que emana da vontade popular livremente expressa, pelo que se mostra nuclear no desenho constitucional do nosso regime.

E não há direito sem norma que o proteja! E não há direito que não mereça tutela judiciária, ou seja, a organização de meios públicos que o torne efetivo. Vivemos num regime de tutela jurisdicional efectiva e que tendencialmente não deixa direitos a descoberto! A tese do Acórdão do STJ conduziria a deixar esses direitos essenciais a mercê da disponibilidade do Ministério Público e não dos seus titulares, ou seja, aqueles a quem eles foram atribuídos. Ora, os mais interessados na defesa do direito de participação na construção de uma deliberação em matéria crucial para o Município que representam são exatamente os vereadores, membros do órgão colegial impedido de expressar a vontade popular!

Há muito a doutrina e a jurisprudência têm vindo a distinguir o controle da legalidade da deliberação substantiva sobre uma dada matéria, de procedimentos que ofendem direitos orgânicos e estatutários dos titulares dos órgãos colegiais na formatação de tais deliberações. Causa algum espanto que o STJ não se tenha despertado pelo facto de manifestamente se estar em presença de uma violação grosseira de um direito político essencial que decorre da qualidade de titular de um órgão político colegial.

Qualquer interpretação de normas legais que conduza ao entendimento que a violação do direito político essencial de discussão e votação em órgãos colegiais do poder político não confere legitimidade ativa aos afetados para impugnar a deliberação, é manifestamente inconstitucional!

Por isso, não está em causa o controle da substância das matérias (orçamento, programas e planos) na sua relação com as leis vigentes, mas sim o uso de um procedimento administrativo que impediu o exercício do direito de informação, de discussão e de votação atribuídos por lei aos titulares dos órgãos colegiais competentes. Naquela matéria essencial os seus mandatos foram materialmente cassados! Impedidos de participar, de discutir e de votar, quando para tanto tinham direito! Foram cortados a esses membros de órgão colegial direitos políticos fundados em vontade popular e protegidos pela Constituição e pela lei.

É “apenas” isso que está em causa! Por isso, com o devido respeito, andou mal o nosso Supremo Tribunal de Justiça.



3 COMENTÁRIOS

  1. O Maika tem razão, a meu ver, em muita coisa que diz na sua brilhante análise. Desta vez, porém, sou ligeiramente a favor da decisão do STJ. Obviamente, e, não sendo eu da área do Direito, não estou abalizado a esgrimir argumentos jurídicos, mas sim, os de natureza política. Não se pode politizar a justiça, nem nem judicializar a política, como fazem o paicv e o JMN o tempo todo. Este é o ponto de partida. O jogo político é feito dentro das regras políticas de uma democracia liberal. A oposição deve jogar com o peso proporcional dos votos que tem no Parlamento e nas Assembleias Legislativaa. Ou seja, você não pode buscar na justiça àquilo que nas urnas você não ganhou, como faz sistematicamente o paicv e o JMN. Se não for resguardado este princípio basilar da democracia liberal, teremos, um dia desses, as minorias (como faz sistematicamente o paicv) a tentar derrubar o governo, para impor a sua vontade através da justiça e não pelo voto popular. Isto, obviamente, não abrange o cometimento de crimes de responsabilidade ou de natureza penal. O que deve fazer o MpD? Processar o pcmp, Francisco Carvalho civilmente ou penalmente. Na ação política, o que resta ao MpD é denunciar o Francisco Carvalho e o paicv e convencer os eleitores a não votar em criminosos e políticos que não respeitem a ordem democrática e jurídica.

  2. O paicv acaba de informar que está “muito feliz” com a decisão do STJ. Isto é muito bom, e espera-se que está felicidade continue para sempre, sobretudo, quando o STJ vier a julgar os “seus casos” em que o paicv tenta derrubar na justiça o que não consegue pelos votos no parlamento. É um casamento de muita convivência e que, certamente, não irá dar filhos, a menos que, subitamente,o paicv, o JMN decidam, agora, 31 anos depois, jurar fidelidade à Constituição da República de Cabo Verde.

  3. A propósito desse Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, as pessoas precisam perceber duas coisas muito importante.

    PRIMEIRO:
    Saber o conceito de legitimidade em processos judiciais.

    Por legitimidade processual entende-se, em termos sintéticos, como a capacidade de estar em juízo (entenda-se no tribunal), isto é, a legitimidade processual refere-se ao direito ou qualidade de uma pessoa ou entidade de participar de um processo judicial como parte ou interveniente. É a capacidade que uma pessoa possui para atuar como sujeito ativo ou passivo em uma demanda judicial e buscar a tutela jurisdicional.

    A legitimidade processual pode ser dividida em duas categorias principais:

    • Legitimidade ativa: Refere-se à capacidade de uma pessoa ser parte autora em um processo, ou seja, ter o direito de propor uma ação judicial em busca de uma pretensão jurídica. A legitimidade ativa é determinada pela titularidade do direito material que está sendo pleiteado em juízo. A pessoa que possui o direito violado ou ameaçado é considerada legitimada ativamente para buscar a proteção jurídica.

    • Legitimidade passiva: Refere-se à capacidade de uma pessoa ser parte ré em um processo, ou seja, ter o dever de responder a uma ação judicial. A legitimidade passiva é determinada pela relação jurídica substancial existente entre as partes envolvidas no litígio. A pessoa ou entidade que possui o dever jurídico em relação ao direito material objeto da demanda é considerada legitimada passivamente.

    A legitimidade processual é um requisito fundamental para que um processo seja válido e eficaz. Caso uma pessoa não possua a legitimidade adequada, ela não poderá estar como parte no processo ou sua participação poderá ser questionada e até mesmo anulada, comprometendo a apreciação do mérito da causa.

    SEGUNDO:
    No caso em apreço, o Supremo considerou que a lei não confere aos eleitos municipais do MpD no município da Praia a capacidade ativa para interpor uma ação administrativa dessa natureza. Quando assim ocorre, a questão de fundo, que neste caso são as alegadas ilegalidades cometidas pelo Presidente da Câmara Municipal da Praia, não chegou a ser analisada pelo Tribunal devido à falta de um pressuposto processual indispensável, que é a legitimidade ativa. A falta desse pressuposto ocorre com frequência nos Tribunais devido à confusão existente na lei do Contencioso Administrativo, que remonta aos anos 80, e tem causado desfechos como esse.

    É estranho o Dr. Francisco Carvalho vangloriar-se de que os eleitos do MpD perderam o processo ou de que ele, como Presidente, saiu vitorioso. Isso não é verdade. Se a questão das ilegalidades alegadas no processo não foi julgada, não se pode falar em absolvição ou condenação. As ilegalidades continuam pendentes de decisão. O Supremo não julgou o caso única e exclusivamente porque a lei não reconhece à parte que intentou a ação a legitimidade necessária. Isso não significa, em termos gerais, que essas eventuais ilegalidades tenham sido resolvidas ou validadas.

    A questão da legitimidade, por vezes, é resolvida ao identificar a parte legítima para intentar o processo. Além disso, é importante ressaltar que, no caso em análise, existem outras instâncias para apurar responsabilidades por eventuais ilegalidades cometidas pelo Presidente Francisco, tais como o Tribunal de Contas, a Inspeção Geral das Finanças e o próprio Ministério Público, no caso de conduta criminosa.

    Se eu fosse o Presidente, não comemoraria essa situação e preferiria manter-me em silêncio, pois o caso está longe de ser resolvido.

    Eu compararia a comemoração do Presidente Francisco à de alguém que cometeu um crime e, por uma mera falha processual, não é condenado e sai comemorando que é inocente.

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