Ainda sobre o Acórdão SOFA. Entrevista do MNE à RCV

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Dada à pertinência em esclarecer, de vez, a opinião pública, sobre o Acórdão do Tribunal Constitucional relativo ao Acordo SOFA, entre Cabo Verde e os Estados Unidos da América, OPAÍS.cv transcreve, com a devida vénia, a entrevista do Ministro dos Negócios Estrangeiros e Comunidades, Luís Filipe Tavares, à Rádio Nacional

A referida entrevista foi conduzida pelo Jornalista Nélio dos Santos e o Ministro esclarece todos os fundamentos do Acórdão, deixando claro não haver a inconstitucionalidade que o PAICV alega ter. Nada no Acórdão belisca a existência, a validade e a vigência do SOFA, sentencia o Chefe da diplomacia Cabo-verdiana, que assegura que o referido acordo vai manter-se sem nenhuma supressão ou alteração

O Acórdão dá satisfação total às posições adotadas pelos dois Governos

RCV – Senhor Ministro, porque é que o Governo, na pessoa de V. Excelência, diz congratular-se com o teor do Acórdão do Tribunal Constitucional sobre o SOFA?

Luís Filipe Tavares – Por uma razão muito simples. O Acórdão dá satisfação total às posições adotadas pelos dois Governos, sancionadas pelos pertinentes órgãos de Soberania do nosso País e agora clarificada pelo TC. Esta clarificação do Tribunal Constitucional fez cair todas as posições do PAICV quanto à inconstitucionalidade deste importante acordo internacional.

Com o Acórdão do TC haverá, no seu entendimento, alguma alteração ao texto do acordo?

O Acórdão do Tribunal Constitucional não implicará nenhuma supressão ou alteração ao Acordo SOFA que continuará idêntico, isto é, tal como assinado entre Cabo Verde e os Estados Unidos da América em 25 setembro de 2017, sem acrescentar ou retirar sequer uma única vírgula. O que o TC fez foi clarificar a interpretação, afastando, assim, os cenários assombrosos avançados pela Oposição.

Mas o TC fala em inconstitucionalidade de segmento, ou se quiser, de parte de um artigo…

Em termos práticos, da simples leitura dos itens B14, 15, 18 e 21 do Acórdão se conclui facilmente que a única inconstitucionalidade assinalada se refere a um segmento de um artigo, e apenas ocorrendo se esse segmento for interpretado num certo sentido, o de que a imunidade de jurisdição atribuída ao “pessoal dos Estados Unidos” permitiria a instalação de Tribunal marcial Americano em território Cabo-verdiano. Não havendo tal intenção em nenhuma das partes, trata-se, assim de inconstitucionalidade meramente virtual. Mas tal interpretação nunca foi adotada por quem quer que seja e, sobretudo, nunca esteve nem está no pensamento das partes no SOFA.

Para exercer a jurisdição penal sobre o seu pessoal, os Estados Unidos da América não solicitaram nem receberam, no SOFA ou fora dele, permissão para instalar qualquer Tribunal seu, marcial ou outro, no território de Cabo Verde.

O que os juízes do TC decidiram é que a norma pode ficar como está e que não pode ser interpretada noutro sentido (aquele que permitiria aos EUA instalar Tribunal, marcial ou outro, em Cabo Verde), porque tal interpretação seria inconstitucional.

Quando a inconstitucionalidade for apenas em alguma interpretação de um segmento de um artigo ou norma, poderá o TC, realizar a interpretação do artigo ou da norma, em conformidade com a Constituição, afastando aquele sentido interpretativo inconstitucional, sem a necessidade de mandar retirar o segmento do artigo em questão e, muito menos, do Acordo. Em síntese, o que o TC fez foi dizer qual é a interpretação que não deve ser feita, sob pena de ser inconstitucional.

Que leitura faz o Governo do conceito de “inconstitucionalidade sem redução de texto” que vem no Acórdão?

Este é um conceito técnico, diria científico, que deriva da própria hermenêutica jurídica. “Sem redução de texto” significa que a declaração de inconstitucionalidade não exige nem supressão nem alteração do texto da lei, mas clarifica a interpretação que doravante se deve fazer desse mesmo texto. O que significa que outras interpretações serão inconstitucionais.

Por outras palavras, os juízes do Tribunal Constitucional decidiram que aquela norma pode ficar como está, mas não pode ser interpretada de outra maneira porque tal interpretação seria inconstitucional.

Para o percebermos corretamente, permita-me citar o ilustre Professor Brasileiro Celso Ribeiro Bastos (1999) que diz, sobre esta matéria, o seguinte: “trata-se de uma técnica de interpretação constitucional – que tem a sua origem na prática da corte Constitucional Alemã – utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, na qual se declara a inconstitucionalidade parcial da norma sem reduzir o seu texto, ou seja, sem alterar a expressão literal da lei. Normalmente, ela é empregue quando a norma é redigida em linguagem ampla e que abrange várias hipóteses, sendo uma delas inconstitucionais. Assim, a lei continua tendo vigência – não se altera a sua expressão literal -, mas o Supremo Tribunal Federal deixa consignado o trecho da norma que é inconstitucional. É dizer, uma das variantes da lei é inconstitucional. Portanto, faz-se possível afirmar que essa técnica de interpretação ocorre, quando – pela redação do texto na qual se inclui a parte da norma que é atacada como inconstitucional – não é possível suprimir dele qualquer expressão para alcançar a parte inconstitucional. Impõe-se, então, a suspensão da eficácia parcial do texto impugnado sem a redução de sua expressão literal”, fim de citação.

Esta definição ou análise ajuda a perceber o Acórdão do TC na parte onde menciona, ou se quiser, faz referência, a este conceito jurídico.

O PAICV fez um requerimento fundamentado ao TC, pedindo a inconstitucionalidade de vários artigos do Acordo SOFA e disse que o Acórdão lhe deu razão… e até cantou vitória. Como vê este posicionamento do maior Partido da Oposição?

Olha, para lhe ser sincero, de duas coisas uma: ou o PAICV não percebeu bem o conteúdo do texto do Acórdão do TC, o que duvido, ou fez fuga em frente para tentar enganar ou confundir parte da opinião pública Cabo-verdiana diante desta derrota política evidente. Acredito mais nesta segunda hipótese.

O PAICV, ou pelo menos uma parte dele sob a atual liderança, tem de se reconciliar consigo próprio, tem de pôr de lado algum antiamericanismo ainda latente que lhe vem da sua essência, da sua fundação enquanto Partido político. Tem de perceber que a guerra fria acabou e que o mundo mudou. Há uma parte do PAICV que já percebeu isso, a outra é que não. Todos os pedidos e fundamentos do PAICV foram clara e minuciosamente rejeitados pelo TC, como sejam:

  • “Não declarar a inconstitucionalidade do nº 2 do artigo III do Acordo sobre o Estatuto das Forças dos Estados Unidos da América em território Cabo-verdiano por alegada violação do direito a não ser discriminado, do princípio da Soberania popular e das regras respeitantes à responsabilização dos titulares de cargos políticos, previstos, respetivamente, no n.º 1 do artigo 1.º e no artigo 24.º, no n.º 3 do artigo 1.º e no n.º1 do artigo 3.º, bem como nos artigos 132.º, 170.º e 199.º, todos da Constituição”;

 

  • “Não declarar a inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo III do Acordo sobre o estatuto das forças dos Estados Unidos da América em território Cabo-verdiano por alegada violação da garantia constitucional de não extradição por crimes a que corresponda no Estado requerente pena de morte, e da garantia de não extradição de cidadãos Cabo-verdianos em casos a que correspondam no direito do Estado requerente pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com caráter perpétuo ou de duração indefinida, sem prejuízo do dever do Estado de Cabo Verde se abster de colaborar com os Estados Unidos na detenção e transferência da custódia do seu pessoal ou em qualquer outro ato de cooperação judiciária para efeitos de instauração de processo-crime ou cumprimento de pena por crimes cometidos em Cabo Verde puníveis com a pena de morte, prisão perpétua ou de duração indefinida de acordo com o ordenamento jurídico dos Estados Unidos da América”;

 

  • “Não declarar a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo XII do Acordo sobre o Estatuto das Forças dos Estados Unidos da América em território Cabo-verdiano por alegada violação do direito de acesso à justiça e do direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrados no artigo 22.º da Constituição”; e

 

  • “Não declarar a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo IV do Acordo sobre o Estatuto das Forças dos Estados Unidos da América em território Cabo-verdiano, porquanto o sentido que dela se extrai não autoriza a instalação de uma base militar norte-americana em Cabo Verde, e, por conseguinte, não viola o disposto no nº 4 do artigo 11º da Constituição da República”.

Em que ficamos então senhor Ministro? Da sua leitura, ou da leitura que o Governo faz, nada vai alterar no texto do acordo SOFA assinado com os Estados Unidos da América?

Nada no Acórdão belisca a existência, a validade e a vigência do SOFA.

O SOFA é constitucional e continua válido sem qualquer supressão e/ou alteração. Ele constitui um marco essencial nas relações históricas existentes entre Cabo Verde e os Estados Unidos da América, em conformidade com os interesses estratégicos e fundamentais do nosso País.

O móbil do PAICV não é de teor jurídico-constitucional e, tão-pouco, se enquadra nos propósitos da defesa dos interesses nacionais. Nem sequer se lembrou que os Estados Unidos albergam a maior comunidade Cabo-verdiana no mundo, tendo muitos dos nossos concidadãos servido no seu exército e morrido nas suas guerras.

O PAICV pretendeu agitar e confundir os Cabo-verdianos.

Os Estados Unidos têm (ou tiveram no passado) um tipo ou outro de acordo SOFA, de acordo com desafios e programas específicos, com mais de cem países do mundo, incluindo países Africanos como o Ruanda, Senegal, Côte d’Ivoire, Etiópia, Gabão, Nigéria, Malawi, Madagáscar e Gana.