DEMOCRATIZAR A DEMOCRACIA: Haverá, verdadeiramente, democracia sem o exercício da cidadania?

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“A injustiça que se faz a um, é uma ameaça que se faz a todos.” Charles de Secondat Montesquieu

Cabo Verde tem sido muito falado nas últimas semanas, e, ao que parece, por boas razões: o país aparece no índice dos países que praticam a democracia muito bem posicionado, motivo mais do que suficiente para justificar merecidos aplausos.

Neste santo ano de 2018, Cabo Verde foi classificado por instituições distintas, tendo obtido respetivamente a 33ª posição, num total de 201 países num estudo efetuado pelo V Dem Institute e a 23ª posição num outro estudo realizado pela The Economist Intelligence Unit em 167 países.

O estudo da The Economist centrou-se sobre cinco principais indicadores, tais como: o processo eleitoral e pluralismo, o funcionamento do Governo, a participação politica, a cultura política e as liberdades civis.

Tanto um estudo como outro, incidem as suas análises sobre a componente política da democracia, com ênfase na liberdade de participação e no funcionamento das instituições políticas.

Se a este nível classificativo, podemos estar satisfeitos, não deveremos, contudo, nos embandeirarmos em arco ou dar foguetes, convencendo-nos que está tudo bem com a nossa democracia.

Temos de ter consciência de que a nossa democracia é coxa, embora tenhamos as instituições formais instituídas, uma constituição que garante os direitos fundamentais e os órgãos representativos eleitos e legitimamente instalados. Ter isso, não deixa de ser importante, e não é nossa intenção apoucar ou não valorizar esses ativos do país.

A Constituição da República no seu artigo 1º, nos nºs 3 e 4 nos diz que:

3. A República de Cabo Verde assenta na vontade popular e tem como objetivo fundamental a realização da democracia económica, política, social e cultural e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

4. A República de Cabo Verde criará progressivamente as condições indispensáveis à remoção de todos os obstáculos que possam impedir o pleno desenvolvimento da pessoa humana e limitar a igualdade dos cidadãos e a efetiva participação destes na organização política, económica, social e cultural do Estado e da sociedade cabo-verdiana.

A nossa constituição tem uma visão abrangente e não limitativa da democracia, que não se contenta com a mera realização periódica de eleições, liberdade de participação política e liberdade de expressão e pensamento. Ela também sugere que a vontade popular terá como finalidade a realização da democracia, no plano económico, politico, social e cultural, ingredientes essenciais para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Com esta formulação, a nossa constituição aponta para o tipo de sociedade que devamos ter, onde deverá imperar a liberdade, a justiça social e a solidariedade. Parecendo que não, a nossa constituição tem uma certa costela socialdemocratizante, cujo compromisso projeta-se no casamento entre a liberdade e a justiça social, que, sintetizada, poderá ser traduzida na expressão: uma sociedade solidária.

Mais: a constituição obriga o Estado a remover todos os obstáculos que impeçam o desenvolvimento da pessoa humana ou que limitem o ideal da igualdade entre os cidadãos e a participação destes na organização política, económica, social e cultural do Estado e da sociedade.

Uma formulação deste calibre, na constituição, deveria fazer recair sobre quem governa o país, a cada momento, a obrigação de a ter como uma bússola ou de se sentir vinculado a um compromisso que transcende a sua vontade, cujos desígnios, plasmados na carta magna, não poderia se furtar de concretizar.

A vinculação ao ideal constitucional deveria afirmar-se como o dever de quem gere o Estado de realizar plenamente a constituição, claro que não de forma automática, mas também não de forma indeterminada, porque de nada vale ter uma constituição repleta de formulações pomposas e com melhores das intenções, se, na prática, não se concretiza o seu espírito e nem se revela a necessária apetência para que as suas promessas, na realidade, estejam na ordem do dia.

Para lá da não vinculação às promessas constitucionais, parece-nos cada vez mais evidente que há como que uma necessidade, neste nosso tempo, de se democratizar a democracia, tendo em devida conta que se verifica uma tendência quase universal de ela estar a afastar-se progressivamente do povo, da vontade do povo, das suas aspirações mais profundas, quando era suposto que o exercício do poder democrático se realizasse pelo povo e em seu nome.

E como salvar a democracia da negação dos seus próprios princípios e valores, sem uma reapreciação crítica da prática democrática vigente e à luz das suas próprias promessas não cumpridas?

Uma reflexão séria deveria, imediatamente, impelir a quem se desse ao trabalho de fazer essa indagação de realizar uma incursão às origens da democracia e verificar como ela evoluiu e porque as instituições, criadas por ela ou em seu nome, se foram afastando do seu ideário e dos seus propósitos originários.

O atual modelo de representação democrática parece estar a esgotar-se, e hoje se poderá facilmente verificar que se acentua a distância que marca a relação entre o eleito e o eleitor, e que, infelizmente, se acentua o fosso e se aprofunda a crise relacional, a medida que as promessas da democracia não são consideradas ou não são cumpridas.

A democracia, nos tempos que correm, é cada vez mais refém dos partidos e cada vez menos dos cidadãos, não sendo anormal que o debate sobre as grandes questões nacionais esteja praticamente reservado ao campo e a agenda partidária, sendo a participação dos cidadãos e das suas organizações representativas reduzida a presença periódica, circunscrita a actos eleitorais ou a consultas de circunstância.

As instituições da democracia não podem e nem devem contentar-se com a participação dos cidadãos nas decisões coletivas limitada ao simples exercício do direito do sufrágio que ocorre de 5 em 5 anos, e pouco mais. A qualidade da democracia, o seu reforço e alargamento da base de participação dos cidadãos exigem a abertura de outros canais e espaços de efetiva intervenção dos cidadãos e das suas organizações representativas.
Não é nossa intenção substestimar ou de pôr em causa o papel dos partidos políticos na democracia. O seu papel é essencial para que a vontade do povo se possa organizar e manifestar na sua diversidade. O problema coloca-se quando se sai do campo da construção da vontade popular para o da representação efetiva. E, é neste ponto, em concreto, que nasce o fosso e gera o atual mal-estar das sociedades democráticas do nosso tempo.

Uma democracia que respira saúde e que se expande e se fortalece, só ocorre quando se alicerça numa sociedade civil atuante. É a sociedade que, pelo consentimento e participação, legitima o Estado e não o inverso. A sociedade civil, como a própria democracia, é uma construção coletiva e uma experiência em processos.
Não há democracia sem o exercício da cidadania!

Mas o exercício da cidadania só poderá, naturalmente, ocorrer se houver uma política que não limite a liberdade dos cidadãos, que se preocupe em remover as barreiras que possam impedir o seu crescimento e fortalecimento e que transmita uma mensagem clara aos cidadãos de que o Estado “não é dono disto tudo”.

Alguns podem até questionar sobre a legitimidade das organizações da sociedade civil, em função de alguns pressupostos de natureza formais. Contudo, a legitimidade das organizações da sociedade civil não advém de um mandato eletivo nem de uma representatividade decorrente do número de seus membros. A sua legitimidade decorre das causas que promovem e das ações que empreendem.

Em regimes autoritários, a sociedade civil, enquanto espaço de liberdade e de participação, se contrapõe, naturalmente, ao Estado. Já na democracia, a relação não se alicerça na oposição ao Estado, nem em se submeter a ele, pois, a sociedade civil existe por si, tem uma legitimidade, lógica e razão de ser próprias e é a partir delas que deve relacionar-se com o Estado.

Para os que se situam no campo do “Estado dono disso tudo”, geralmente manifestam um temor em relação ao reforço de participação da sociedade civil. Contudo, convém frisar que o fortalecimento da sociedade civil não é nem causa nem consequência do enfraquecimento do Estado. A sociedade civil e o exercício de cidadania não substituem nem se confundem com o Estado. Convém destacar isso com a devida ênfase: mais sociedade civil não quer dizer, nem quer significar, menos Estado.

Nas democracias modernas, o Estado é tão necessário como insuficiente. E não identificamos qualquer contradição, e, muito pelo contrário, entre uma sociedade civil pujante e um Estado eficiente.

A participação cidadã, através de Fundações, Ordens Profissionais, Sindicatos, Associações de Empresários, ONG, Associações Comunitárias, Movimentos Cívicos, poderá ser uma forma de fortalecer a democracia e reforçar a representatividade tradicional, através de mecanismos mais simples de envolvimento dos cidadãos em processos decisionais.
Mas isso terá de ser ações genuínas, e não simples atos para o inglês ver e nem meras formalidades “ritualescas” que visem o cumprimento do calendário.

A democracia tem que ser regada, podada e enxertada de novos condimentos, em estações certas, de maneira a responder, no tempo e no espaço, às expetativas e às aspirações de um povo e de uma nação, que são, afinal, a razão de ser e fundante da própria democracia.



2 COMENTÁRIOS

  1. A nossa constituicao tem uma ” visao abrangente e nao limitativa da democracia “; diferente e o preverso ou seja o politico no poleiro do poder que, na sua preversao e prevesidade da-se mal com a lei fundamental distorcendo a e restringindo a democracia e a participacao democratica minando e armadilhando as Instituicoes da Republica sobretudo, a Justica e, consequentemente, o desenvolvimento social e cultural das nossas comunidades, interna e externa. Nos tempos que correm, uma “ditatura simpatica” nao nos ficaria mal, onde, inteligencias esclarecidas actuam com valores, firmeza, bom senso, tudo em prol do bem comum entao sim a democracia caboverdiana sera uma realidade e nao caprichos de tao insignificantes individuos.

  2. Terei de comentar este texto do JAR, através do meu TM, mas não resisto fazê-lo agora. É assim, algumas pessoas ainda acreditam que eram mais felizes com a democracia nacional revolucionária do Paicv, e, apresentam com suposta vantagem, suposta participação na jaac, iPad, milícias, tribunal de zona, untccs, entre outras bizarrices, contrapondo a “chatice” que é essa coisa da democracia, com povo na rua, com TV e rádio a denunciar violência urbana, serviços públicos ineficientes, desemprego, etc. Ora bem, somente mentes atrasadas admitem tal asneira. A democracia é isto mesmo: inconformismo, insatisfação, pó pedido de contas, querem mais e sempre melhor. Desejar participar mais. Por esta razão, muita gente acha que seria melhor trocarmos essa chatice por algo mais previsível e controlado, sob a liderança de um chefão que todos obedecem. Falso, falso. Nesses últimos tempos, nostálgicos do velho regime, salientam supostas virtudes de um regime ditatorial sob o manto de a democracia já não serve. Esses pensamentos não deveriam sequer fazer escolas porquanto perversos.

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