Podemos estar perante fortes indícios da prática de crimes de Abuso de poder, Infidelidade e Peculato pelo PR

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O escândalo “salário da primeira dama” tem trazido à tona, ainda que muito timidamente, o problema da proteção de dados pessoais dos cidadãos, mas, curiosamente, relegando para plano muito inferior a temática da eventual responsabilidade criminal do Presidente da República (PR), também suscetível de ser chamada ao caso.

Tenho lido artigos de jornais, poucos, e ouvido declarações sobre o tema da proteção de dados pessoais, tudo muito por alto, escritos e expressados de forma muito bonita, com muita teoria e muita retórica, em voz alta, em certos casos carregados de alguma histeria partidária, mas sem qualquer sustentação técnico-jurídico, ou então, com alguma referência a normas legais, porém, salvo o devido respeito, de ligeira ou insuficiente fundamentação, a meu ver.

Do que tenho lido, ouvido e analisado sobre o referido escândalo, fico com sérias dúvidas se o mesmo configura uma mera “atribuição e recebimento ilegal de salário pela PD”, pois, creio que podemos sim é estar perante fortes indícios da prática de crimes de Abuso de poder, Infidelidade e Peculato pelo PR, sob capa de pagamento de um “salário” à PD, cargo inexistente. Digo “pretenso salário”, já que, e muito estranhamente, a senhora Débora Carvalho, primeira dama, figura, vejam lá (!), como pessoal contratado (???) da Presidência da República, segundo a ordem de pagamento que veio a público. Ainda fazendo fé nessa ordem de pagamento, pergunta-se: que tipo de contrato vincula a dita senhora à Presidência da República? Esse contrato existe mesmo? Pode ser apresentado às autoridades? Primeira dama contratada pela Presidência da República?! Contratada para ganhar o dobro do que ganha o PR?! Isto tudo carece de explicação para a compreensão do comum dos mortais.

Ainda sobre a “contratação da primeira dama”, as atabalhoadas tentativas de (não) esclarecimento público do Chefe da casa civil vão em sentido diferente do que consta da tal ordem de pagamento. O chefe da casa civil não fez qualquer referência a esse suposto “vinculo contratual”. Tentou justificar o ato com base em outros argumentos vazios e nada convincentes, como é do conhecimento geral. Afinal em que ficamos, Sr. Chefe da Casa Civil?

Coloca-se a questão se o chamado salário da primeira dama (PD) é um dado pessoal legalmente protegido e se terá sido violado. Bem, antes disso há que apurar, em primeiro lugar, se a figura de PD existe legalmente como um cargo, para, em consequência, se discutir a legalidade do salário que lhe foi atribuída, sem deixar de lado a discussão da legalidade do valor em si, auferido (310.606$00).

O que se sabe com toda a certeza é que não existe legalmente o cargo de primeira dama, logo, não existindo cargo de PD, em consequência não pode existir a figura de salário nem de valor atribuído a esse cargo inexistente. Por estes motivos, não se pode estar perante violação de dados pessoais salariais da referida senhora. Se esses pretensos dados pessoais nem sequer existem…

O caso em analise tem essa particularidade decorrente da sua total ilegalidade, de os pretensos dados salariais da PD (do salário em discussão) serem pura e simplesmente INEXISTENTES, não carecendo assim de proteção. Isto reforça a ideia de que em nenhuma situação se pode falar em violação dos mesmos.

Daí nosso entendimento de que podemos estar sim perante fortes indícios de um caso de Abuso de poder, Infidelidade e Peculato praticados pelo PR, em simultâneo e sob capa de pagamento de um pretenso “salário” à PD, atos que consistiram na subtração ilegal de valores monetários do erário público, com claros prejuízos para os cofres do Estado. Razão pela qual, o valor auferido como “salário” pela companheira do PR (310.606$00) deveria ser chamado de valor mensal subtraído ilegalmente dos cofres do Estado. Assim é que achamos que seria o correto.

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Revela-se também de especial pertinência saber se os salários praticados na Função Pública, que em princípio devia incluir o pretenso salário da PD, podem ser considerados como dados pessoais protegidos ao abrigo do que vem estabelecido no Regime Jurídico Geral de Proteção de Dados (Lei nº 133/V/2001, de 17 março).

Sucede que as remunerações praticadas na Função Pública, em regra, constam de legislações publicadas no Boletim Oficial (BO), requisito legal para a validade e eficácia de qualquer diploma legal.

Por isso, com a publicação desses diplomas no BO tornam-se do conhecimento público, dos cidadãos, das autoridades, das pessoas coletivas e não só, ou seja, por essa razão/via legal já se encontram divulgadas.

Estando divulgadas, ficam excluídas da abrangência do regime jurídico de proteção de dados, o mesmo que dizer que não carecem de proteção visto serem do conhecimento público desde a sua publicação no BO.

Assim sendo, no caso de salários praticados na Função Pública, e pelas razões demonstradas, não se pode falar em violação de dados já que aceder aos já divulgados não configura de modo algum prática de qualquer violação de sua segurança para o referido efeito, de a eles aceder.

Cingindo-se ao caso concreto da PD, mesmo que o tal “salário” fosse considerado um dado pessoal, teria que constar de diploma legal publicado no BO, tal não estaria também abrangido pelo regime jurídico da proteção de dados, pelo que não se podia falar em violação de dados pessoais visto que se estaria a aceder, relembramos, a um dado pessoal já divulgado.

À título de exemplo, aproveitamos para elencar uma série de diplomas legais mencionados, publicados no BO, de onde constam os salários praticados na Função Pública, e vejamos:

  1. Lei nº 28/V/97, de 23 junho (Estatuto remuneratório dos titulares de cargos políticos) que se conjuga com a Lei nº 29/V/97, de 23 junho (Estatuto remuneratório do Presidente da República): do primeiro diploma consta os salários do presidente da Assembleia Nacional, dos deputados, do Primeiro Ministro, do vice-PM, dos Ministros, dos Secretários de Estado e dos Presidentes da Camaras Municipais e Vereadores, indexados ao valor do salário do Presidente da Republica, este que consta do segundo diploma legal;
  2. Lei nº 20/X/2023, de 24 março (Lei de Bases do Emprego Público): estabelece no seu artigo 149 que as remunerações constam de tabela única de remuneração em lei de desenvolvimento a ser aprovado;
  • Decreto lei nº 49/2014, de 10 setembro (Estatuto do Pessoal do Quadro Especial): os valores salariais praticados constam dos Anexos I e II a este diploma;
  1. Decreto lei nº 59/2014, de 04 novembro (Estatuto do Pessoal Dirigente): os valores salariais praticados constam do Anexo III a este diploma;

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Importa discorrer um pouco, juridicamente, sobre a matéria da proteção de dados dos cidadãos. Ora, a nossa Constituição da República consagra (ver artigo 45) o Princípio da proteção de dados pessoais dos cidadãos. Dispositivo constitucional que se encontra densificado em legislação ordinária – no Regime Jurídico Geral de Proteção de Dados (Lei nº133/V/2001, de 17 março).

O Tratamento de dados pessoais (tratamento), que interessa para o caso, e de acordo com a lei, consiste em qualquer operação ou conjunto de operações sobre dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados tais como … a utilização (dos dados) … (ver artigo 5, nº1, alínea b) da Lei nº133/V/2001, de 17 março).

O Responsável pelo tratamento, é legalmente definido como sendo a pessoa singular ou coletiva, a autoridade publica, o serviço ou qualquer outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outrem, determina as finalidades e os meios de tratamentos dos dados pessoais (ver artigo 5, nº1, alínea d) da Lei nº133/V/2001, de 17 março).

A Violação de dados encontra-se definida na lei como sendo violação de segurança que provoque, de modo acidental ou ilícito, … a divulgação ou o acesso, não autorizados, a dados pessoais transmitidos, conservados ou sujeitos a qualquer outro tipo de tratamento (ver artigo 5, nº1, alínea o) da Lei nº 133/V/2001, de 17 março).

É certo que o tratamento de dados, por regra, só pode ser feito mediante o consentimento expresso e inequívoco do titular. Porém, tal regra comporta exceções, em que o consentimento do titular não é exigido por lei, sendo que para estes casos a autorização é da competência da Comissão Nacional da Proteção de Dados (CNPD) quando tal tratamento se revela necessário para certas situações legalmente tipificadas, realçamos as que se seguem visto se aplicarem ao caso,  nomeadamente i) cumprimento de obrigação legal a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito, ii) execução de uma missão de interesse público ou no exercício de autoridade publica em que esteja investido o responsável pelo tratamento ou um terceiro a quem os dados sejam comunicados (ver artigos 7 e 8, conjugado com o artigo 40, nº1, alínea a), todos da Lei nº133/V/2001, de 17 março).

A situação em causa enquadra-se nas tipificadas referidas no parágrafo anterior e é de avançar desde já que, mesmo admitindo novamente, por mera hipótese, que o tal “salário” da PD seja considerado um dado pessoal, o Tribunal de Contas (TC) atua no caso, como o Responsável pelo tratamento de dados no cumprimento de uma obrigação legal – a investigação financeira deste caso que envolve a Presidência da República -, missão de interesse público, e praticada no exercício de autoridade pública em que o TC se encontra investido. Assim sendo, o consentimento do titular dos pretensos dados (no caso a PD) não é legalmente exigido para o seu uso.

A CNPD, por sua vez, é uma autoridade administrativa independente a quem compete assegurar a fiscalização da proteção de dados pessoais, autoridade que funciona junto da Assembleia Nacional (ver artigo 38 da Lei nº 133/V/2001, de 17 março).

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De tudo o que já li, ouvi e analisei juridicamente sobre o escândalo “salário da primeira dama” a perceção que tenho, explanado neste artigo, é de que:

  1. estranha e escandalosamente a dita Primeira Dama consta como sendo do pessoal contratado (?!) da Presidência da República para auferir um “salário” de valor correspondente ao dobro (?!) do que aufere o próprio PR;
  2. os pretensos dados pessoais da PD referentes ao tal “salário” em causa são INEXISTENTES, logo, não pode haver violação de qualquer dado pessoal, dessa natureza, da referida senhora;
  • o aludido escândalo configura, desde logo, alta probabilidade de estarmos perante fortes indícios da prática de crimes de Abuso de Poder, Infidelidade e Peculato pelo Presidente da República, sob capa de pagamento de um pretenso “salário” à PD, cargo inexistente à luz da lei.  


1 COMENTÁRIO

  1. Muito bem, caro doutor. O que, na prática se busca, com este tipo de reflexões esdrúxulas, não é a criminalização do acesso a dados referentes a um posto juridicamente inexistente, mas sim, proteger pessoas, incluindo o PR (por ação ou omissão), que de livre e espontânea vontade uniram seus esforços em associação e comunhão de esforços para empreender repetitivamente condutas criminosas no topo da hierarquia do Estado. Como ficou demonstrado neste estupendo artigo, suas narrativas não resistem ao menor esforço racional. Muito boa análise, caro doutor Rogério.

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