UM OLHAR SOBRE O “31 DE AGOSTO” – Sem qualquer tentativa de reescrever a história.

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  1. Começo por sugerir leitura atenta de parte de um célebre discurso (medonho e ameaçador) de Pedro Pires, então PM de Cabo Verde e Secretário Geral adjunto do PAICV, extraído da página 50, 2◦ parágrafo, do livro “O DIA DAS CALÇAS ROLADAS” de Germano Almeida, proferido dias após o primeiro golpe de Estado ocorrido na Guiné Bissau, em novembro de 1980, portanto, meses antes dos acontecimentos “31 de Agosto” de 1981 em S. Antão, vejamos:

“…só existe uma única moral, a moral revolucionária, a moral dos que deram tudo para que este país fosse independente e para que ele seja o que é neste momento e que aquele que pretender perturbar a nossa marcha será tarde ou cedo esmagado…”

PEDRO PIRES, novembro de 1980

Portanto, para o então Primeiro Ministro, secretário geral adjunto do PAICV e Comandante de Brigada das FARP, Pedro Pires, se dúvidas houvesse, e para um bom entendedor, quem ousasse se opor ao regime POR ELE LIDERADO, nem sequer seria julgado de acordo com a lei, como é apanágio num Estado de Direito Democrático, mas seria sim tarde ou cedo ESMAGADO, esmagado como é típico e usual nos regimes totalitários.

Discurso que, sem dúvidas, marca o prenúncio de toda a brutalidade que viria meses depois a ser cometida, pelo regime de partido único, contra os presos do “31 de Agosto”, sem esquecer os péssimos sinais (também de brutalidades) já dantes demonstrados pelo mesmo regime contra um grupo de cidadãos em S. Vicente, 1977.

Aliás, não é por menos que no final do parágrafo onde consta tal discurso, e fazendo referência ao mesmo, o autor do livro chegaria a uma conclusão que embora carregada de ironia, mas óbvia: “Agora é preparar o lombo”. (escreveu Germano Almeida).

Meses depois, “31 de agosto” de 1981, os primeiros que se opuseram ao regime foram desumanamente maltratados e esmagados: na sua saúde, no seu orgulho próprio, na sua dignidade, além do esmagamento material sofrido, tudo com repercussão negativa nas suas vidas até a data de hoje, e em muitos casos até a morte.

  1. 2. Tenho apercebido de que quando se fala do “31 de agosto” há uma tendência para se focar apenas em apurar quem é o culpado de todos aqueles acontecimentos ou tumultos que tiveram lugar nos dias que antecederam ao dia 31, e que veio a ter o seu ponto trágico nesse mesmo dia em Boca de Figueiral. Se a culpa foi do partido então no poder ou dos populares.

Há sempre o risco de se cair no erro de que o não culpado dos factos ocorridos até ao dia 31 fica com as mãos limpas em todo este caso. Puro equívoco pensar desta forma! O “31 de agosto” não se resume ao que ocorreu até ao dia 31, prolongou-se por muito mais tempo e com consequências nefastas, até hoje, para os então presos e familiares.

O PAICV, então partido único no poder, tem feito muitas tentativas no sentido de se esquivar das suas enormes culpas, ou as minimizar o mais que puder, tendo recorrido a trabalhos de historiadores e sociólogos para ver se atinge esse fim, numa clara pretensão de reescrever a história, de modo a limpar a sua imagem relativamente a esse acontecimento histórico.

Trabalhos de historiadores e sociólogos têm-se cingido meramente sobre tais factos ocorridos até ao dia 31, pois é o que parece mais conveniente a essa força política, como se tudo tivesse esgotado nesse fatídico dia 31 de agosto de 1981. Como se nada tivesse acontecido do dia 01 de setembro em diante, até ao dia da leitura da sentença do Tribunal Militar que condenou um grupo de cidadãos a elevadas e absurdas penas de prisão, parte mais cruel desse acontecimento, não fosse o sucedido com o malogrado Adriano Santos.

Sobre a parte de 01 de setembro em diante, que os referidos historiadores e sociólogos têm preferido “não tocar”, felizmente que foi feito valioso trabalho pelo Dr. Germano Almeida (defensor dos presos) no seu livro “O DIA DAS CALÇAS ROLADAS”, onde demonstra as grandes injustiças de que os presos foram vitimas tanto no Tribunal Militar de Instância que os julgou e condenou com base em provas nulas, porque obtidas mediante violenta tortura física e psicológica, bem como a decisão não menos injusta proferida pelo então Supremo Tribunal Militar, que viria a confirmar a absurda sentença da instância militar.

Ainda sobre essa mesma parte do “31 de Agosto” o falecido Dr. Onésimo Silveira fez também um trabalho valioso no livro “A TORTURA EM NOME DO PARTIDO ÚNICO”, compilação de relatos feitos em primeira pessoa pelos próprios torturados, em que estes descrevem as barbaridades que sobre eles foram cometidas por militares e por elementos dos serviços de segurança do regime.

Ora,

o “31 de agosto”, a meu ver, comporta o que chamo de 2 CAPÍTULOS, e é de explicação muito simples. Sendo o 2º capítulo, o mais doloroso, demonstrador de toda a crueldade cometida pelo regime de partido único contra cidadãos que viriam a ser presos, julgados e condenados.

Porém, sobre este capítulo, o mais cruel e doloroso, o PAICV, e seus historiadores e/ou sociólogos, apenas dizem que foram cometidos “excessos”. Resumem-no nessa “mágica” palavrinha (!!!).

Como se esses “excessos” fossem coisa pouca, de importância menor, sem gravidade nem consequências sérias, e até dramáticas em alguns casos, para os presos e familiares.

Vejam lá (!!!) o que apelidam, muito superficialmente, de “excessos”, e que procuram, por conveniência, retirar importância: detenções feitas com violência física, mês e tal de violentas torturas e outros tratamentos cruéis – físicos e psicológicos, contra os detidos, encarceramento durante semanas em celas imunes no quartel de Morro Branco, para onde foram transportados em porões de navios, julgamento fantoche com condenações absurdas a elevadas penas de prisão, tudo com graves prejuízos familiares, materiais e sobretudo para a saúde das pessoas que foram presas, julgadas e condenadas.

  1. 3. O “1º CAPITULO” do “31 de Agosto”, cinge-se aos acontecimentos relacionados com a condução do processo de socialização do anteprojeto de lei de Reforma Agrária, as reuniões de esclarecimento, as manifestações de protesto, etc., e que vieram culminar nos incidentes de Boca de Figueiral no dia 31.

Para mim, neste capítulo, a culpa muito provavelmente poderá dividir-se entre as autoridades da época, que aliás muitos reconhecem que o processo nem sempre foi bem conduzido, e os populares, porque como todos sabemos, nas situações que envolvem grandes massas nem sempre boa parte das massas porta-se bem.

Sou de acreditar que de entre os populares havia gente bem-intencionada, como também havia gente mal-intencionada, isto acontece sempre nessas situações.

Também acredito que de entre as autoridades havia gente bem-intencionada, com desejo de levar as coisas a bom porto, e gente mal-intencionada, prepotentes, com uso de linguagens excessivas que em situações do tipo só servem para enfurecer boa parte das massas. E até pessoas com intenções ocultas, de verem naquilo uma oportunidade de acertarem eventuais “contas/recalcamentos do passado”, assuntos muito pessoais, no fundo, desejo até de, nas suas perspetivas, alguma vingança.

Infelizmente o resultado deste “1º capítulo” teve um momento trágico, a morte do camponês Adriano Santos.

Relativo à morte deste malogrado camponês tenho ouvido muitas versões, de neutralidade acho que uma tanto duvidosa, porque sempre carregada de uma certa histeria partidária. Populares de então que tomaram parte nos acontecimentos dizem que o Adriano foi atingido sem motivo que o justificasse. Militantes e dirigentes do PAICV dizem que ele havia atacado um militar e lhe tirado a arma e por isso foi alvejado.

Perante essas versões, totalmente antagónicas e carregadas do que já chamei de histeria partidária, fico sem saber o que pensar, visto que não estive no local (felizmente! Não era sítio para um miúdo de 13 anos àquela hora), não vi com os meus próprios olhos, por isso não estou em condições de formar uma opinião honesta acerca, e muito menos pretendo alinhar-me na versão que achar de mais conveniência política partidária como muitos fazem.

Perante este cenário, limito-me a lamentar profundamente o sucedido, pois, perdeu-se uma vida humana, os filhos ficaram órfãos e com enorme necessidade da presença, do sustento e carinho do pai, a viúva sofre traumas até a presente data, pelo que as consequências familiares, infelizmente, foram nefastas.

  1. Entremos agora, com maior profundidade, no que chamo de “2º CAPÍTULO”, iniciado na madrugada de 01 de setembro 1981, em que o regime de então deu mostras de grande crueldade, daí as autoridades da época procurarem sempre fugir a este “capítulo” como o diabo foge da cruz.

Nessa fatídica madrugada de 01 de setembro, deu-se início às detenções de forma ilegal porque feito por militares e já de madrugada dentro. Os detidos foram submetidos a toda a espécie de pancadaria e de outros métodos cruéis de tortura, que começou nessa madrugada nas instalações do então Ciclo Preparatório da Ribeira Grande (feito quartel militar por essa ocasião) e teve prolongada continuação, por cerca de dois meses, no quartel de Morro Branco em S. Vicente, onde foram colocados em celas imunes e indignos para acolher um ser humano.

Destaca-se de entre os instrumentos de torturas utilizados, uma máquina de choque elétrico TAY 43 importada da ex-URSS (ver foto na pág. 181 do livro “A TORTURA EM NOME DO PARTIDO ÚNICO”) que se destinava a esse fim.

Quanto aos tratamentos cruéis que os detidos foram submetidos remeto para os relatos detalhados no livro “A TORTURA EM NOME DO PARTIDO ÚNICO”, depoimentos dos torturados.

Em S. Vicente e em Santo Antão, era de conhecimento público, à boca pequena, que os presos andavam a ser cruelmente torturados e que muitos estavam até com sérios problemas de saúde resultantes desses maus tratos. Fugas de informação que chegavam através de soldados do quartel de Morro Branco que contavam a amigos e familiares.

Agora, é caso para formularmos uma série de questões que achamos pertinentes. Pergunto:

  1. alguém é capaz de acreditar que as mais altas esferas do poder de então não tinham conhecimento das longas sessões de pancadaria e de outros tratamentos cruéis a que os presos estavam a ser submetidos em Morro Branco, da noite de 31 de Agosto em diante, e que se prolongou por todo o mês de Setembro e Outubro?
  2. Alguém é capaz de acreditar que durante o mês de Setembro 1981, sendo já do conhecimento público as torturas e tratamentos cruéis de Morro Branco, nada chegou ao conhecimento das mais altas esferas do poder/partidárias/militares de então, que eram também os mais altos dirigentes do partido único, o PAICV, e mais altas patentes militares (Aristides Pereira e Pedro Pires)?

Assim, é caso ainda para questionarmos o seguinte:

O então Presidente da República Aristides Pereira, guardião da Constituição da República, Comandante Supremo das Forças Armadas e Secretário-Geral do PAICV, não tinha conhecimento do que se estava a passar?

O então Primeiro-ministro Pedro Pires, Comandante de Brigada das Forças Armadas e Secretário-Geral adjunto do PAICV, não tinha conhecimento do que se estava a passar?

O então Presidente da AN, Abílio Duarte, também não tinha conhecimento?

E os Ministros da Defesa e do Interior, também não tinham conhecimento?

A resposta a todas essas questões só pode ser uma, ou seja, as mais altas figuras do Estado (PR, PM e PAN) e do regime de então, mais os ministros incumbidos das pastas de Defesa e Segurança, TODOS TINHAM PLENO CONHECIMENTO DO QUE SE ESTAVA A PASSAR EM MORRO BRANCO, E NÃO SÓ.

E mais, com toda a certeza tinham pleno conhecimento das barbaridades que estavam a ser praticadas em Morro Branco pelos militares e serviços de segurança do regime, visto que na altura a UCID, na clandestinidade, além de ter organizado manifestações de protesto à porta do consulado de Cabo Verde em Roterdão – Holanda, denunciou, logo nos primeiros dias, à organismos internacionais, sobretudo à Amnistia Internacional, as prisões ilegais e os tratamentos cruéis a que os presos estavam a ser sujeitos.

A Amnistia Internacional, por sua vez, imediatamente advertiu o Estado de Cabo Verde sobre tais violações de direitos humanos, tendo até enviado emissários a Cabo Verde para se inteirarem do que se estava a passar.

Aqui fica claro, que as mais altas esferas do poder de então estavam a par de tudo o que se estava a passar. Escusado virem dizer (os que ainda estão vivos) que não sabiam de nada, pois, se por hipótese muito remota, não ficaram a saber por informação das patentes militares mais baixas, resulta evidente que ficaram a saber na hora, através da advertência feita pela Amnistia Internacional e pelos rumores que publicamente circulavam.

Continua sendo caso para formularmos mais algumas questões que achamos pertinentes:

  1. Sabendo as mais altas figuras do Estado e patentes militares, sobretudo os comandantes de mais alta patente, Aristides Pereira e Pedro Pires, do que se estava a passar, pois, sabiam melhor que ninguém que tais práticas se traduzem em graves violações de direitos humanos, qual foi a reação que tiveram? Manifestaram-se alguma vez contra tais atos cruéis? Se eram contra, tomaram medidas para pôr termo ao estado de coisas? Se tomaram medidas, que medidas tomaram?

Só pode haver uma resposta para todas essas questões: sabiam de tudo e nada fizeram, em nenhum momento usaram de seus poderes para tomarem uma atitude. Foram coniventes e mandantes de tudo e deram a sua anuência à essa crueldade, estavam em perfeita sintonia com quem, no terreno, praticava tais crueldades. Tudo em nome da defesa do regime, como acontece em situações idênticas por esse mundo fora.

  1. é ainda alguém capaz de acreditar que tais atos cruéis foram medidas tomadas isoladamente por algum comandante das forças armadas? E se assim foi, que fizeram as mais altas patentes quando tomaram conhecimento de alegados tais atos isolados?

Pois, tais atos, mesmo que, por mera hipótese, tivessem sido de iniciativa isolada de algum comandante ou chefe de segurança, deixaram-no de o ser quando as mais altas esferas do poder tiveram deles conhecimento e não tomaram medidas para os evitar.

  • Alguém é capaz de acreditar que aquela máquina de choque elétrico TAY 43 que foi usado nas torturas (ver foto na pág. 181 do livro “A tortura em nome do partido único”), de fabrico e importado da ex URSS veio parar ao quartel do Morro Branco por acidente ou por descuido?

É claro que não. Foi trazida com a finalidade de torturar pessoas que se opusessem ao regime. Tanto é que foi utilizado para torturar os presos do “31 de Agosto”.

Pois,

Está provado que todas as crueldades cometidas contra os detidos tiveram o conhecimento e anuência das mais altas esferas do poder, tanto do poder político bem como militar e claro, das mais altas esferas partidárias de então, do PAICV.

Nada me faz pensar o contrário, o regime de então foi cruel, pelo menos neste caso específico do “31 de Agosto” e não venham resumir na palavrinha “excessos” cerca de dois meses de torturas e suas nefastas consequências para os torturados e familiares, torturas organizadas e concertadas, com uso, de entre outros instrumentos, de máquina de choque elétrico importado da ex-URSS, e com uso de métodos cruéis aprendidos em Cuba, ex – RDA e ex – URSS, além de julgamento e condenações injustas a que foram submetidos.

  1. Seria bonito que o partido no poder na época, O PAICV, através dos seus atuais dirigentes, ao menos formulasse um pedido de desculpas aos ofendidos, em vez de, e como por várias vezes tem acontecido, estar a tentar reescrever a história para se esquivar de suas enormes culpas.

Este meu olhar vai ficando por aqui, consciente de que não estou totalmente livre de vir a ser, levianamente, acusado de com este mero exercício de cidadania estar a espalhar ódio e rancor por aí.

Ficam aqui as minhas ilações, sem ódio, sem rancor, sem qualquer espécie de sentimento negativo, mas COM TOTAL REPUDIO, E… SEM TENTATIVAS DE REESCREVER A HISTÓRIA.

ROGÉRIO DOS REIS

Cidade de Ribeira Grande – Santo Antão



3 COMENTÁRIOS

  1. Mais um que tenta reescrever a historia.
    Nos Sabemos quao duro foi esse periodo de Partido Unico….Atencao que nao foi apenas Santo Antao….MAs, enquadra-lo dessa forma tentando deliberadamente nao mencionar outros protogonistas ….eh Mais um elemento que cai no descredito

  2. Excelente. A nossa história não é só a Fome de 47 ou a queda do muro da Assistencia ou o 19 de Setembro mas também o 31 de Agosto. Não podemos ficar reféns dos chamados “donos” do nosso destino.
    Ou assumimos por completo os momentos bons e maus da nossa história ou é o que vemos hoje, em grande medida, uma juventude completamente ignorante no que diz respeito ao nosso passado ou melhor, com falhas graves, portanto incapazes de perceber muitas coisas do presente.

  3. Parabéns Rogério.Conseguiste em breves palavras resumir o sofrimento dos nossos presos políticos do 31 de agosto.Sofrimento que persiste até aos nossos dias, infelizmente.

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